quinta-feira, 29 de abril de 2021

ENTREVISTA

 

OS CAMINHOS

 

SANDRA ASSALI 
COORDENADORA DO LIVRO "ACIDENTE AÉREO - O QUE TODO FAMILIAR DE VÍTIMA PODE E DEVE SABER"

 

                    Foto: coleção pessoal da entrevistada                                 Foto: Reprodução


                                                                           Por Solange Galante

Recebi pelo correio um livro que considero muito importante. Seu título é "Acidente Aéreo - o que todo familiar de vítima pode e deve saber". 

Bem ao contrário do que você poderia supor, na capa do mesmo não há um avião destruído, corpos dilacerados, bombeiros trabalhando ao redor de destroços fumegantes. Na capa deste livro, um lindo campo de girassóis. A ideia foi do editor Carlos Monteiro, inspirado pelo depoimento de uma das familiares de vítimas que consta no livro. Ele também comenta que o girassol é uma flor emblemática, pois procura o sol, a vida. E, todos sabemos, as flores são usadas para homenagear as pessoas queridas que já partiram. Por isso que a primeira página do livro tem a frase "Nós usamos a flor que busca a luz – da verdade".

O livro foi escrito por 30 autores, todos especialistas em suas áreas, sob coordenação de Sandra Assali. Talvez você não se lembre dela... hoje! Quem se lembra do acidente com o Fokker 100 da TAM em outubro de 1996 em São Paulo talvez até se lembre dela, mas muito menos, com certeza, do que o "prefixo do avião (PT-MRK) ou de que ele era todo azul com uma pintura especial porque a TAM tinha ganhado um-prêmio-não-sei-de-quê..." Ah, sim, lembrar-se-ão que caiu no bairro do Jabaquara após decolar do Aeroporto de Congonhas e o reverso da "turbina" abrir. E é só.

Com absoluta certeza, quem não participou do resgate dos corpos, da investigação, do noticiário e muito menos, graças a Deus, era parente ou amigo próximo das 99 vítimas do "Vôo 402", assistiu ao desenrolar daquele drama, nas semanas e meses que se seguiram a ele, como se hoje assistisse a um seriado da Netflix. Ou seja, a gente "participa" remotamente da trama e, depois do "The End" desliga a TV e vai dormir.

No meio desta pandemia da covid-19, muita gente também não esperava da noite para o dia perder, em alguns casos, a família inteira, gente saudável, uma pessoa ou várias com filhos, às vezes netos, mil planos a realizar, prestes a casar ou recém admitido numa empresa, de uma doença tão pouco conhecida e altamente fatal, um ano após sua descoberta. Meu pensamento sempre compara a morte por doença à morte por acidente, seja automobilístico, aéreo, um desabamento ou mesmo a explosão da tampa de um bueiro a seus pés. Eu acho que a morte de pessoas queridas por "acidente", por ser muito mais inesperada que doenças, por mais graves que estas sejam, assim como a morte por "bala perdida" ou violência por crime de arma branca ou de fogo, são as que mais dilaceram o coração, o psicológico e a vida como um todo, daqueles que sobrevivem e permanecem.

Acredito que essa entrevista com Sandra Assali irá trazer de volta à memória de muita gente uma personagem que esteve em todas as mídias da época e hoje apresenta o mais valioso fruto de sua experiência de dor e de suor em prol dos que ficaram, não só seus próprios parentes e amigos diretos, mas inúmeros colegas de luto.


Caixa Preta: Além de presidente da ABRAPAVAA (Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos) você é advogada, mediadora de conflitos, palestrante e escritora. Qual era sua profissão até 31 de outubro de 1996, data em que perdeu seu marido no acidente com o TAM 402?

Sandra Assali: Eu já estava formada em Direito mas não advogava. Eu era Secretária Executiva e já havia trabalhado em grandes empresas, como Jonhson & Jonhson, BNDES, etc.

CP: Lembro como se fosse hoje do acidente... Incrédula desde que eu soube do ocorrido e já prevendo o tamanho da tragédia, pois foi um acidente ocorrido dentro de área densamente povoada da maior cidade da América do Sul, eu, formada em jornalismo há então menos de três anos e me dedicando em tempo integral à aviação há menos de dois, acompanhei tudo que pude pela TV e jornais, na época eu nem tinha acesso à internet... Mas eu percebi, mesmo fora de "redes sociais" como as que existem hoje, comentários preconceituosos e maledicentes sobre você e outras parentes de vítimas do TAM 402. Digo "outrAs parentes" porque, aparentemente – me corrija se eu estiver errada –, a maioria das vítimas do acidente eram homens, executivos que estavam viajando a trabalho, como era o caso do seu marido. Por isso, tais pessoas maldosas, aqui ou ali, comentavam "Vai cair o padrão de vida dessas viúvas, já que os maridos eram  executivos bem sucedidos, agora elas vão ter que trabalhar pra viver." Eu ouvi frases assim, e acredito que você também tenha ouvido ou lido.  Enfim, você sentiu esse preconceito logo após o acidente? E como lidou com isso?

Sandra Assali: De forma alguma... verdade que ouvimos muitas coisas, das mais absurdas, às mais acolhedoras... estávamos muito próximas e unidas à época e, muito expostas na imprensa/mídia, fosse na TV, nos jornais, rádios, etc. Sim.... ficamos em mais de 80 viúvas, mais de 100 órfãos menores... ninguém tinha ideia ou condições de avaliar o que estávamos passando diante da total ausência de apoio e assistência por parte da TAM e, principalmente, pelo fato de, a maioria, ter perdido seu provedor... achavam que, uma vez a grande maioria  das vítimas sendo executivos, estávamos todas em situação financeira confortável... estavam enganados mas também combinamos "não vamos responder a ninguém... deixem que falem..." e assim agimos. Tanto que, diante do nosso silêncio pelas provocações, os comentários cessaram. Não tínhamos de dar satisfações a ninguém... vivíamos um momento tão complexo e doloroso... nossas prioridades eram tantas... jamais perder tempo com provocações sem sentido.

CP: Até onde eu sei a ABRAPAVAA foi a primeira associação do gênero a ser fundada no Brasil. De onde surgiu a ideia? Você foi aconselhada a criá-la ou as próprias dificuldades causadas pela tragédia na sua vida a fizeram idealizar algo do tipo?

Sandra Assali: Sim... a ABRAPAVAA foi a primeira do gênero no Brasil. A ideia surgiu depois que as famílias passaram a se conhecer, criarmos um grupo, organizarmos algumas reuniões e identificarmos que todas estavam encontrando as mesmas dificuldades, ou seja, falta de informações, falta de assistência, não sabíamos por onde começarmos, quais os nossos direitos, etc. Então, numa dessas reuniões, chegamos à conclusão que, para termos respeito e exigirmos informações deveríamos fundar uma Associação e assim, reconhecidas "de direito" poderíamos "cobrar" por informações, respostas, atenção e respeito.

CP: Poucos meses após o acidente que vitimou seu marido, teve grande destaque na imprensa a morte do menino Ives Ota, de apenas oito anos de idade, após um sequestro em São Paulo, você deve se lembrar disso também. O pai da criança, Masataka Ota, mais do que usar a camiseta com a foto do filho, que se tornou icônica, para buscar justiça, batalhou até o fim da vida por tornar sua tragédia pessoal o ponto de partida para mudanças em leis, tornou-se vereador e criou um instituto de combate à violência e auxílio social que existe até hoje. Você consegue fazer uma comparação entre as duas tragédias pessoais que mudaram a sua vida e a vida de Masataka Ota? 

Sandra Assali: Eu acredito que as "adversidades" nos movem... principalmente em se falando na perda de um ente querido, como um filho, um marido, uma mãe, ou seja, toda situação onde seu familiar "é arrancado" de seu convívio em situações bruscas, inesperadas e dolorosas, elas nos movem... Apesar do choque, do luto necessário, da dor e da saudade, são exatamente esses os motivos que nos levam à busca por respostas, por responsabilidades e, principalmente, por um olhar onde se torna necessária a iniciativa por regulamentação, prevenção, mudança de atitudes e inciativas que previnam situações semelhantes, ou seja, "para que não mais aconteçam".

CP: Como surgiu a ideia do livro em si, lançado 25 anos após o acidente e quase isso desde a criação da Associação? Como amadureceu a ideia que, certamente, foi uma longa gestação? 

Sandra Assali: Meu primeiro livro foi lançado em 2016 – no dia 31 de outubro, data dos 20 anos do TAM 402: "O Dia que Mudou Minha Vida". E o lançamento de março último - "Acidente Aéreo - O que todo familiar de vítima pode e deve saber.": a ideia nasceu nasceu da experiência de 24 anos da ABRAPAVAA. Nossa rotina com os familiares de vítimas identificou uma dificuldade comum, e natural, para entenderem a linguagem própria e característica aeronáutica. O familiar quer respostas e informações mas, é um "mundo à parte"...  é complexo... de difícil compreensão. Foi nesse momento que surgiu a ideia de uma obra, convidando especialistas em suas áreas, que fossem autores numa linguagem "leiga" e de fácil entendimento a todo familiar de vítima.

CP: Você acha que as empresas, grandes e pequenas, ainda são despreparadas para lidar com um acidente aéreo? 

Sandra Assali: Em se falando da aviação comercial, temos hoje boas experiências e uma preocupação com treinamentos constantes seguindo principalmente, as orientações da IAC-200-1001 da ANAC. Já, quanto à aviação geral, nossa maior preocupação, diante do, ainda alto, número de acidentes aéreos e a razão do maior volume de trabalho da ABRAPAVAA, sim, é necessário ainda um olhar e uma preocupação para um maior preparo, envolvimento e treinamento aos proprietários e gestores de empresas como táxi-aéreo, executiva, rotativas, experimental, em se falando em gerenciamento de crise e assistência aos familiares de vítimas.

CP: Você também teve a percepção que eu tive, na época, e em outros acidentes, que os tripulantes das aeronaves envolvidas, especialmente os pilotos, são "esquecidos" quando ocorre um acidente? Ou seja, dá-se maior destaque às vítimas "passageiros" e aqueles tripulantes só são lembrados pela imprensa, principalmente, mas também pela polícia para serem acusados por seus prováveis erros e falhas?

Sandra Assali: Acredito que já sinalizamos mudanças, ainda longe do ideal. Sempre reforço que e, principalmente aos "achistas de plantão" que, mal o acidente acontece, já estão emitindo opiniões sobre o que pode ter acontecido, não podemos nos esquecer que, diante da TV ou de uma rede social, tem um familiar daquela vítima que está vendo/lendo aquelas informações e tudo que é precoce numa análise de um acidente aéreo, pode afetar grandemente um familiar. Já presenciei situações onde se atribuiu prematuramente a culpa ao piloto e o familiar estava presenciando aquela fala, o que lhe afetou de forma dolorosa e, posteriormente, a informação não procedeu... ninguém pediu desculpas e os prejuízos emocionais à aquela família foram terríveis!

CP: Eu coleciono reportagens sobre aviação desde 1995, gravando (antes em VHS, hoje em DVD e HD). Desde então, percebi que a imprensa, especialmente a de TV, tem tido mais cuidado hoje ao divulgar imagens das vítimas de acidentes aéreos, pelo menos borrando as cenas quando fortes. Inclusive, acho que a última grande tragédia em que houve exibição de imagens muito fortes a respeito foi justamente a do voo 402. Você acha que o 402 foi um divisor de águas a esse respeito? (Tenho um curso de aviação para jornalistas e estou preparando um sobre sensacionalismo da imprensa em relação à  aviação)

Sandra Assali: Sim... concordo. Hoje existe um cuidado maior e muito necessário na exposição de um acidente aéreo perante à imprensa/mídia. Por outro lado, temos um agravante: as redes sociais. Na minha rotina, é muito comum receber vídeos de cenas chocantes de acidentes aéreos, por pessoas que, assim que chegam  ao local do acidente, logo que acontece, começam a filmar pelo celular e imediatamente compartilham nas redes sociais. E isso por todo o Brasil.

CP: Na sua opinião, qual o "desserviço" da imprensa quando não trata com o devido cuidado, respeito e, principalmente, correção a pauta "acidente aéreo"?

Sandra Assali: Foi como mencionei acima... um trauma ao familiar de vítima. Falta de sensibilidade e respeito. Difíceis de superar!

CP: Ainda há familiares do Voo 406 lutando judicialmente com a TAM, mesmo hoje, quando ela já se tornou Latam? 

Sandra Assali: Não tenho conhecimento de mais nenhum caso pendente no 402 e quanto ao 3054 (2007) tem alguns casos de familiares que buscam reparação contra a Airbus nos EUA mas, quanto aos acordos no Brasil, foram todos finalizados.

CP: Qual seu recado final para quem se interessar pelo livro que coordenou?

Sandra Assali: O livro traz ao familiar de vítima, aos gestores, aos escritórios de advocacia, aos psicólogos, aos socorristas, aos legistas etc, informações importantes e de fácil compreensão, desde o momento que o acidente acontece, até a reparação/indenização, numa linguagem simples e clara. É um livro que, seguramente, poderá e levará orientação e informações importantes em situações de tragédia e perdas em massa, para além dos acidentes aéreos.

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