UMA AVÓ NA CABINE DE COMANDO –
PARTE 1
(fotos: Solange Galante)
Grandes empresas aéreas mundiais da
Europa, Américas, Oriente Médio e Ásia sempre estão na imprensa, na internet e
na publicidade, pelas mais diversas razões, e influenciam toda a indústria
aérea.
Mas existe na África negra um exemplo de
empresa pequena diante do quadro mundial, porém, grande dentro de sua região, e que
vive provavelmente, hoje, sua melhor fase.
Lá de Angola, distante geograficamente
do Brasil mas, ao mesmo tempo próxima pelo idioma, o gigante Boeing 777 com um
antílope na deriva trouxe para São
Paulo, onde realizamos a entrevista, esse exemplo de determinação e disciplina
de uma senhora e avó que se destaca em uma atividade ainda hoje considerada
machista: a Cmte. Alexandra Lima.
Acompanhe a primeira parte da entrevista, seguir.
Como você começou na aviação?
Eu trabalho na aviação há 36 anos. Ainda não tinha feito 18 anos
quando comecei a trabalhar na TAAG. Comecei como comissária de bordo, como os
brasileiros chamam, para nós, “assistente de bordo” – os homens são
“comissários” mesmo. Quando a TAAG abriu candidaturas para o curso de piloto,
eu me inscrevi e fui para o curso.
Na época havia outras mulheres fazendo o curso de piloto?
Tinha mais uma que, na época, começou o curso mas não ficou apta,
portanto, só mesmo eu que cheguei ao fim do curso.
Você trabalhou como comissária durante quanto tempo?
Trabalhei durante três anos, e depois fiz o curso para piloto
durante dois anos.
Então, das duas mulheres, só você passou...
Fiz o curso de Piloto Privado, comercial e de instrumentos na
Sérvia (então Iugoslávia) e saí para voar na TAAG o Fokker F-27, por isso que
eu acho que sou Jurássica (risos). Depois eu voei o Boeing 737-200, o Boeing
747-300, o Boeing 777 como copiloto, depois desci para ser comandante de Boeing
737-700, onde fiquei uns seis anos, e agora estou no comando do Boeing 777 (1) onde
estou há uns 6 anos. Nós ficamos muito tempo como copilotos por uma razão muito
simples: meu país esteve em guerra durante muitos anos (2), então
não havia desenvolvimento econômico, e tínhamos poucos aviões. O país mudou,
hoje está mais aberto, as pessoas viajam mais, a companhia cresceu bastante, no
início era uma companhia quase familiar, antigamente todos nos
conhecíamos, éramos amigos de todos, hoje é mais fácil alguém estar na
tripulação e eu nunca tê-lo visto, isso já demonstra o crescimento da empresa.
Já são muitas mulheres como pilotos na TAAG?
Não, atualmente somente eu e a Katheleen (copiloto de Boeing
737-700).
Mas a empresa nunca colocou oposição às mulheres pilotos?
Não, não. Pelo contrário, a empresa ajudou muito na minha
formação. Naquela altura, era o governo que pagava os nossos cursos, pois o
curso de pilotagem é caro, e a empresa sempre esteve ao meu lado embora seja um
ambiente que se torna difícil para as mulheres por ser um ambiente onde reina o
homem e o homem tem tendência a ser machista, mas soubemos contornar isso,
essas atitudes negativas, ou menos positivas, dos homens.
Então no seu país o caminho para ser piloto comercial é só esse,
pela TAAG? Passando no concurso interno e passando pelo treinamento desde PP
com eles?
Hoje há outras companhias, como a SonAir, que pertence à nossa
empresa de petróleo Sonangol, temos algumas empresas privadas também, mas para
fazer carreira, tem que ser uma companhia comercial de monta, que é a TAAG
E os interessados (de fora da TAAG) fazem um aeroclube como no
Brasil?
Não, nós fazemos muita formação fora. Temos muitos pilotos que
foram formados no Brasil, Portugal, África do Sul.
Mas tem formação em Angola também?
Tem, mas é muito limitada e demorada, o que faz com que muitas
vezes a pessoa perca o interesse pela profissão. Nós mesmos fazemos nossos
cursos de qualificação para os aviões fora do país. Já fiz muito simulador
quando estava no 732 aqui, na Varig. O de 747 eu fazia na África do Sul, já fiz
simulador de 777 em Dubai, agora faço em Londres, fiz minha formação em
Seattle...
Muitas vezes, para a própria empresa é melhor do que ter um centro
de treinamento...
Sim, pois um centro de treinamento requer muitos cuidados... acho
que para nós fica muito mais barato. Embora tenhamos instrutores angolanos e
brasileiros, como é o caso do Marcelo Lins (3), a maior parte da formação
teórica é feita em Angola mesmo mas simuladores e a prática é mais feita fora.
E há muitos pilotos estrangeiros trabalhando na TAAG, a exemplo do
Marcelo?
Temos alguns. Desde que começamos a receber os aviões novos, doze
anos atrás, não tínhamos tantos pilotos para tantos aviões, voei, como copiloto
de 777, com comandantes brasileiros.
E quanto à família, você é casada, tem filhos?
Eu sou divorciada, o melhor estado civil que existe... (risos).
Tenho um filho e uma filha, sendo o Luís, que já tem 26 anos e a Daniela, que
tem 22 anos. E já tenho meu neto, um ser especial para mim, que já fez sete
meses e se chama Manuel.
E seus filhos têm algum interesse em aviação?
Absolutamente nenhum. O Luís tem interesse em telecomunicações e
trabalha numa empresa dessa área, e a Daniela está a fazer o curso de
engenharia de construção civil em Lisboa há quatro anos.
Seu marido também não era da aviação?
Não, também não. Eu
tenho um tio, que já está aposentado, que é piloto (voou na TAAG), e tenho três
sobrinhos pilotos, sendo um deles de helicóptero e dois, pilotos privados de
avião.
E quando você entrou para a aviação sua família impôs alguma
restrição?
Minha mãe, sim. Meu pai morreu muito cedo, eu tinha quatro anos.
Para qualquer pai, os filhos deveriam ter formação superior, os filhos deveriam
fazer o que os pais queriam que eles fizessem, então, acho que é mais ou menos
por aí. E como eu entrei como comissária de bordo quando comecei a trabalhar,
minha mãe se sentiu triste, tentou de todas as maneiras ir contra mas o caminho
estava traçado e foi por aí que eu fui. Hoje ela é muito orgulhosa daquilo que eu
faço! Principalmente porque as pessoas falam com muito respeito, com muito
carinho acerca de mim. Por acaso hoje mesmo eu estava no Facebook, com aquelas
memórias, e vi um artigo que tinha sido feito àquela altura e dois amigos
compartilharam e havia comentários e elogios de muita gente que não conheço,
mas que falavam de mim com carinho por ser esta pessoa com coragem e de ter
chegado aonde eu cheguei sem nunca ter humilhado ninguém, respeitando sempre
toda gente... Os passageiros sentem muito prazer em viajar comigo...
Os passageiros ficam surpresos?
Não, porque 90% da população d’Angola me conhece, e é engraçado,
eu digo para meus filhos: “não ousem nunca fazer alguma coisa errada porque no
dia que tu fizeres a coisa errada não vai ser tu que vais ficar mal visto, vai
ser o filho da Cmte. Alexandra. As pessoas têm em mim uma pessoa reta,
disciplinada, respeitadora, e eu não quero que tu, com uma atitude negativa
tua, sujes uma imagem com que eu convivo há muitos anos. Não sujes o que eu
construí até hoje.”
Porque a empresa é um cartão de visitas do país... A TAAG logo
remete à lembrança de Angola...
Exato, então é isso que eu procuro que meus filhos façam: sejam
disciplinados, acima de tudo, e que respeitem o próximo, respeitem a vida e si
próprios também. É mais ou menos por aí que eu batalho todos os dias, e mesmo
em relação aos meus colegas. Até há pouco tempo eu era uma das pessoas mais
novas da empresa, mas hoje já sou uma das pessoas mais velhinhas da empresa
(risos) e o que eu faço com meus colegas é precisamente isso: é tentar fazer
com que eles respeitem os passageiros e mudem sua forma de estar para que não
prejudiquem nunca a empresa que contrata eles, os passageiros que lhes pagam o
salário. Muitas vezes os colegas entram, assim, em conflito de gerações,
aqueles que acham que fazendo errado está certo, e eu que acho que fazendo
certo é que está certo. Às vezes temos assim uns conflitos...
Mas você já sentiu algum caso de preconceito por você ser mulher
na aviação, ou de parte de colegas ou de parte de passageiros?
Há sempre, porque a gente não consegue agradar a toda gente,
né?... Eu dou muitas entrevistas em Angola, mais pelo caráter social. Por que
quem me conhece sabe que eu não gosto que as pessoas olhem para mim como
famosa. Eu só faço aquilo que eu gosto. Mas é mais pelo caráter social. Quero
tentar motivar a juventude do meu país a melhorar sua forma de estar no
mundo hoje e melhorar sua forma de ver o mundo amanhã, pois o mundo será deles.
Porque a juventude, hoje, muito cedo mete-se no álcool, nas discotecas, em
coisas tão ruins e eu, quando falo sobre aquilo que eu fui, comecei muito cedo,
e minha profissão é uma profissão de muita disciplina mesmo, então o que eu
quero é alertar a juventude. Há pouco tempo também dei uma entrevista a um
grupo de jovens que tem uma revista online e foi uma das entrevistas
mais partilhadas e comentadas, precisamente porque eu dizia para a
juventude: o futuro é ontem! O teu futuro já começou ontem e se tu
não te propuseres a fazer o melhor para ti, tu não tens futuro. Por exemplo:
meu país esteve em guerra. Eu já era piloto e fiz muitos voos para as forças
armadas Onde arrebentavam bombas aqui, ali... aquilo era horrível!
Eu tinha que ser disciplinada, saber o que eu tinha que fazer...
Nesses voos eram aviões da TAAG que haviam sido recrutados?
Exato. Transportávamos recrutas do Exército de uma província para
outra, além de transportar a população, pois o único meio da população se
deslocar, naquela altura, era por via aérea. Não se podia se deslocar nem por
estradas, porque havia confrontos, muita gente perdeu a vida e o avião era o
meio mais seguro para se fazer isso. Então, “tô dentro”, né? Eu não pedi a
ninguém para ir para lá mas era a minha profissão. E só com disciplina, só com
respeito se consegue chegar. Nessa altura eu era muito nova e o que era bom
para mim é que eu tinha o respeito dos meus comandantes e dos meus colegas,
porque eles reconheciam em mim uma boa profissional. Mesmo com aquela situação
de guerra o profissionalismo estava sempre à frente.
Então hoje quando você dá entrevista, os jornalistas a procuram
por você ser uma mulher na aviação, há aquela curiosidade toda, e você
aproveita essa deixa para passar uma mensagem mais ampla...
Exatamente...
Como “Não falem de mim, eu é que quero falar para os jovens...”
É isso que eu quero. Eu digo com toda a sinceridade:
eu conheço quase que o mundo. Mas eu idolatro o meu país. Eu gostaria muito que
meu país estivesse nas páginas de jornais mas com coisas boas. Infelizmente,
ainda está por muitas coisas ruins.
Que ano acabou a guerra?
Em 1982. Mas parece que não acabou... (2) Para mim, o que eu
gostaria de ter, não é ter uma Suíça, né? Mas eu queria ter um país onde não
houvesse tantas falhas como há, onde nós não fôssemos página de jornal por
coisas ruins mas por coisas boas. Então, onde você começa a fazer isso? Pela
juventude. E eu gosto dessa parte social que me é imposta: dizer à juventude
que o país é nosso, que temos que trabalhar por ele, e que nada dessas coisas
ruins vão nos fazer subir. Falta muita educação à população. Ninguém faz um
país com um povo analfabeto, que não sabe aquilo que é bom, então, normalmente
as minhas entrevistas são assim, porque a juventude olha para mim e diz “Olha
aquela cota, comandante...?” Cota é aquela senhora mais velha... E eu quero que
eles olhem para mim assim: “Ela chegou lá. Se eu tentar, eu vou conseguir.” Mas
“eu não posso tentar amanhã, eu já tenho que tentar ontem!” Tenho que
começar a lutar por mim ontem. Eu não nasci rica. Eu não sou rica. Mas eu
melhorei muito a minha condição social, com a ajuda da minha mãe, com a ajuda
da minha avó e consegui dar aos meus filhos melhores condições do que aquelas
que minha mãe me deu.
(1) A TAAG possui os modelos Boeing 777-200ER e Boeing 777-300ER
(2) Quase 30 anos, e a guerra civil só terminou oficialmente em
2002.
(3) ex-Varig
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