sábado, 6 de abril de 2024

SPEECH

 O CONTROVERSO PIONEIRISMO DAS PRIMEIRAS PLA'S BRASILEIRAS

(por Solange Galante)

Quando eu comecei a gostar de aviação, no final da década de 1970, “mulher piloto” era extremamente raro na aviação civil brasileira. Na aviação comercial, então, nem se fala. E não era justamente por falta de dinheiro para pagar as sempre caras horas de voo necessárias para obter a carteira.
Se você acha que as mulheres sofrem, hoje, preconceito ao escolher determinadas profissões, imagine há 50 anos, quando ninguém sonhava em dizer “mulher pode ser o que quiser” – muito menos as próprias, que, em sua maioria, acreditavam que isso não era possível e se conformavam em buscar outra carreira, mais “feminina”.
Ao me apaixonar pela aviação eu ainda não tinha a mínima ideia se eu realmente queria “trabalhar” na aviação. Grana para fazer o curso de pilotagem, nem em sonho, e ser comissária, naquela época, era praticamente impossível para quem usava óculos, era mais “cheinha” e não tinha pelo menos 1,65 m de altura – ou seja, eu não me encaixava no padrão. Além disso, meu inglês ainda era “de escola (ginasial)”. Pelo menos, as minhas tentativas frustradas serviram para incentivar meu pai a me botar numa escola de idiomas, as tentativas não foram em vão...
O Aeroporto de Congonhas, onde eu “batia cartão” com meus pais de tempos em tempos aos sábados ou domingos para ver avião subir e descer e/ou fazer algumas fotos distantes com minha câmera bem simples, tinha duas lojas da lendária Livraria La Selva. Uma delas, a menor, ficava num corredor, que era muito mais estreito do que é hoje, na interligação da saída do desembarque com o saguão central. Naquele corredorzão havia agência de correios, algumas lojas... e a “mini” La Selva.
Então, um belo dia, deparei com um livro na vitrine que virou o objeto de desejo de uma adolescente, finalmente adquirido por minha mãe, não menos que semanas depois.



(coleção Solange Galante)


Eu já havia ficado entusiasmada ao ver na TV reportagens sobre Márcia Aliberti Mammana, uma pioneira da acrobacia aérea, de quem logo que tornei fã. Marcinha, como era chamada, causava curiosidade aos olhos dos demais pilotos (homens). Mas, a outra mulher, a do livro acima, causava sentimentos muito mais depreciativos.



(coleção Solange Galante)


A matéria de 1980, a que tive acesso no jornal Shopping News, era uma pincelada do que ocorrera com Lucy Lúpia Balthazar. Mas eu tive melhor e mais detalhado conhecimento da história de Lucy somente a partir do livro, que minha mãe comprou em 1982. Com ele, eu conhecia também o tamanho das dificuldades para as mulheres voarem, especialmente na aviação comercial. E, mais tarde, com maior conhecimento sobre o que ocorria no lado político do Brasil, eu também ficava a par do quanto os militares exerciam seu poder até mesmo na aviação.
A aviação não militar do Brasil tinha seus xerifes no Departamento de Aviação Civil, cuja diretoria era exatamente formada por militares da FAB. Lucy corajosamente publicou no tal livro sua luta árdua para ter seu lugar no céu, citando, inclusive, nomes, e mostrou como leis mudavam ao sabor dos ventos do DAC e canetadas limitavam sua ascensão profissional. Já não bastassem os impedimentos da própria aviação civil, onde colegas pilotos e/ou suas esposas e/ou outras mulheres de influência nas cias. aéreas olhavam com cara feia para Lucy e cortavam suas asas, de uma maneira ou de outra.
O livro publicado primeiro em 1979 e que só consegui tê-lo e lê-lo em sua segunda edição foi uma das inspirações para o meu romance A Ás, então iniciado, ainda rascunhado à caneta, depois à máquina de escrever. A principal personagem: a Cmte. Sônia, uma mulher que teria sido a primeira Piloto de Linha Aérea, o degrau mais alto para quem almeja licenças para voar comercialmente. Mulher esta, que mesmo na ficção, também enfrentou inúmeros dissabores e preconceito explícito também.

“A OUTRA”

(Esta é Graziela Fernandes; foto de Solange Galante)


Fiquei nove anos afastada da aviação, até mesmo achando que havia me “curado” daquela paixão e, quando fui “reinfectada” eu conheci uma outra mulher na aviação, esta muito mais tranquila quanto à escalada em sua carreira: Claudine Melnik havia aparecido na revista Caras pilotando um Cessna Caravan da Brasil Central Linhas Aéreas para a tal Ilha de Caras. Logo em seguida, tornou-se a primeira mulher comandante da aviação regular brasileira – claro, ela já era PLA. Eu já havia feito amizade com ela e, com a ideia de fazer uma reportagem sobre ela para a revista Aero Magazine – eu já era jornalista formada e colaboradora da publicação –, me foi dada uma missão mais ampla: havia, na época, umas 10 mulheres na aviação comercial brasileira (incluindo a Claudine, única comandante) e consegui entrevistar algumas delas para minha primeira reportagem profissional remunerada.
O interessante é que eu não ouvia mais falar da Lucy, a aguerrida pioneira a ter o direito não realizado de obter a carteira de Piloto de Linha Aérea e que havia botado a boca no trombone querendo simplesmente voar profissionalmente em grandes companhias.
E eis que quando eu colaborava também com a publicação Aviação em Revista, esta editora foi contratada pelo SERAC 4, o quarto Serviço Regional de Aviação Civil, subordinado ao DAC, para eu ser a redatora, por vezes também fotógrafa, das matérias para essa revista especial dos 25 anos do SERAC.


(coleção Solange Galante)


Entre as pautas que a diretoria queria incluir, mulheres na aviação: como controladoras de voo, mecânicas de avião, até mesmo a única wingwalker em atividade no país... e várias mulheres pilotos.
E foi então que me disseram: "Você precisa entrevistar também a Graziela!".
Até então eu não tinha a mínima ideia de quem seria a tal Graziela. O fato é que ela estava no livro da Lucy, sem seu nome ser citado, mas estava, conforme mais abaixo, mas eu não liguei a descrição do infortúnio da Lucy àquela senhora que me pautaram para incluir na revista especial.
Creio que eu jamais confirmarei isso, mas o fato é que me parecia que houvera uma “disputa” interna no DAC sobre quem teria entregue a primeira carteira de PLA a uma mulher no Brasil – e essa seria a razão do grande interesse do SERAC IV em eu entrevistar a Graziela. Não tocavam no nome da Lucy – também não ousei perguntar dela lá no DAC, embora não fosse mais a mesma diretoria dos tempos em que lhe negaram a licença PLA – e o fato é que Lucy era carioca, subordinada a outro SERAC, o SERAC III.
Graziela Santos morava no bairro do Paraíso e, diante de seus contatos, me fornecidos lá no SERAC IV, combinamos eu fazer a entrevista em sua casa, um apartamento na cobertura do edifício Tour de Pin.
No apartamento muito grande e confortável, enquanto a tal piloto me dava entrevista acariciando seu mini poddle “Puppy” (se não me engano o nome era esse) primeiro me chamou a atenção seu sotaque e eu soube que ela era paraguaia de nascimento, mas naturalizada brasileira.  Havia sido esportista campeã no automobilismo, também pilotava e viajava com motos de velocidade, participara de corridas de lanchas offshore e cavalgava puros sangues – havia dezenas de esculturas de cavalos em sua casa, sendo que o marido havia sido cavaleiro premiado – e ela possuía, então, um avião Seneca cuja matrícula era PT-EET.
Era uma pessoa muito simpática e agradável. Até onde eu sabia, não tinha filhos, mas conheci, quando o vi uma ou duas vezes, seu marido Carlos. Graziela fazia aniversário no mesmo mês em que eu.
Após essa entrevista inicial, combinamos eu fotografá-la na frente de um avião (que nem era o dela, que ficava numa fazenda da família) para a revista. A foto foi feita no Campo de Marte.
Enfim, assim como Lucy, Graziela nunca havia trabalhado em companhia aérea regular. Aliás, só pilotara seu próprio avião e alguns outros particulares de outras pessoas, inclusive um Learjet. Mas havia sido checadora do DAC.
Particularmente, no meu ponto de vista, de que adiantava ser PLA sem trabalhar na aviação dos grandes aviões? Nem ela e nem Lucy haviam tido essa experiência. Graziela alegava ter optado pela vida de dona de casa, voando só esporadicamente como o Seneca, ou seja, não seguiu a profissão de piloto comercial. Já Lucy, embora tivesse fama de não ser uma pessoa fácil, alegava que não conseguira subir na hierarquia da profissão unicamente por causa do preconceito dentro do DAC.

QUEM ERA GRAZIELA, AFINAL?

Em seu livro, Lucy escrevera:


(coleção Solange Galante)



Eu realmente não saberia dizer se Graziela era tão rica como o ponto de vista de Lucy, mas tinha uma vida confortável. Ela era, de fato, esportista. As páginas a seguir falam de sua carreira no automobilismo e até nas disputas com lanchas offshore. As mesmas reportagens citam rapidamente sua experiência na aviação:



Tendo aparecido em reportagens (uma delas, na década de 1980, no Jornal Hoje, que assisti na casa dela, pois ela tinha uma fita VHS com cópia) e já sendo conhecida nos esportes de velocidade, enquanto Lucy ainda exigia seu reconhecimento como PLA, a fama de Graziela ganhou a imprensa. Por outro lado, quem conhecia de perto Lucy e sua luta não deixava de afirmar que ela é que era a verdadeira primeira PLA brasileira.

EU E LUCY / EU E GRAZIELA

Meu saudoso chefe, o editor Hélcio Estrella, da Aviação em Revista, me ajudou a contatar Lucy pois eu queria fazer uma entrevista com ela, e ele, carioca como a piloto, a conhecia bem – até mesmo conhecia seu gênio forte. Mandei um e-mail para ela falando da entrevista e, para minha decepção, ela respondeu secamente com apenas uma frase: “Leia meus livros”. Foi o suficiente para eu pegar bronca dela. Todo jornalista sabe que há uma enorme diferença entre ler um livro e estar diretamente entrevistando alguém.
E a Graziela, por sua vez, sempre tão atenciosa e simpática. Almocei três ou quatro vezes na casa dela, comida simples mas saborosa preparada por sua empregada e cozinheira.
E sobre a Lucy, o que Graziela dizia? Na verdade, ela nunca se aprofundou no assunto quando eu a interrogava. Para a paraguaia de nascimento, se o SERAC IV dizia ser ela, Graziela, a primeira PLA brasileira, não precisava de mais nada, essa era a verdade. Ela evitava polemizar mas deveria estar ciente de que Lucy simplesmente a odiava. Quem convivia com a piloto carioca dizia que era assunto proibido tratar sobre a Graziela com ela.
No meio dessa polêmica sobre a primeira PLA eu reescrevia meu romance “A Ás” para melhorar os detalhes técnicos e a história em si e, para mim, a primeira Piloto de Linha Aérea brasileira era realmente a Cmte. Sônia, também sofrendo com preconceito – palavra, aliás, que Graziela parecia não conhecer, já que sempre participara de esportes puramente “masculinos”.
Enquanto Lucy mantinha sua legião de fãs, especialmente mulheres e apoiadores, sendo que a vi apenas uma vez, em um evento de aviação, mas nem puxei papo, fui percebendo que as crises econômicas brasileiras foram afetando o padrão de vida de Graziela, que não competia fazia tempo e estava envolvida com problemas que a ocupavam e limitavam minhas visitas a seu apartamento. Mas lancei meus dois livros, sobre o Cel. Braga (biografia) e o romance A Ás e Graziela fez questão de adquiri-los pela internet, e fui autografar o primeiro em sua casa, e o segundo eu deixaria na sua portaria.
Como eu não era da legião de fãs de Lucy (aliás, eu tinha amizade com Graziela mas não me considerava fã dela também), tinha quase nada de notícias sobre a piloto carioca e fiquei sabendo muito após janeiro de 2000 que ela enfim obtivera seu desejado certificado PLA, nesse mês e ano, retroativo a 1976. O que, penso eu, por mais que seja de direito, não serviu para muito mais do que isso, já que ela parara de pilotar há anos. Da mesma maneira, muitos anos depois do ocorrido foi quando eu soube também de seu falecimento, em 24 de maio de 2012. Muito pouco noticiado, fato quase restrito apenas aos amigos, parentes e fãs. Que a causa havia sido câncer, igualmente eu só soube ainda mais tarde.
Na outra ponta dessa história, logo fui percebendo que Graziela não estava bem, estava muito doente e continuava evitando visitas. Conversávamos por telefone, às vezes, ou por email, como era mais comum.
Quando eu percebi que o que Graziela tinha era também câncer, logo julguei a condição ter sido agravada pela crise financeira – ela chegou até a vender seu PT-EET, que simplesmente amava.
Graziela faleceu em 20 de dezembro de 2021. Vou sempre lembrar dessa data pois é a mesma do falecimento de Calos Spagat, em cuja revista Flap ele publicou esta nota em 1992.


(Fonte: revista Flap Internacional abril/maio de 1992)


CONCLUSÃO?

Graziela foi de fato a primeira mulher a receber a certeira PLA no Brasil, licença 2500, emitida em 08/12/1979. Lucy recebeu a dela, licença 2086, retroativa a 1976 mas a data de emissão é 04/01/2000, passando a ser a primeira mulher piloto de linha aérea no Brasil.
Se as coisas não houvessem sido tão difíceis e escandalosamente repletas de preconceito por parte dos militares da época em que as fardas mandavam em tudo, talvez Lucy não tivesse vivido com tanto amargor mas também não teria sido tão resiliente para conseguir fazer valer o seu direto de pioneira, dando um bom exemplo de luta a muita gente. Ser a número 1 para ela era tão importante, mesmo que apenas no papel, quanto provar que Tereza de Marzo sim havia sido a pioneira em sua época, e não Anésia Pinheiro Machado – bandeira que Lucy também ergueu. 
Quanto à Graziela, embora eu nada possa provar, realmente me pareceu que os mesmos militares tinham interesse em torna-la a primeira PLA, no lugar de Lucy ou independentemente disso, até mesmo por uma disputa com o Rio de Janeiro. O fato é que, mesmo com essa polemica, quem realmente empurrou as portas da aviação comercial brasileira para as mulheres seguintes entrarem em definitivo foram outras: Arlete, Kalina, Carla, Claudine, Eveline, Alena, Fernanda, Marina. E, ainda com militares e DAC, conquistaram seu lugar na história da aviação comercial de grande porte.

Lucy não desistiu, mas não fez tanto quanto podia e queria fazer na aviação. Graziela também poderia ter aproveitado melhor a oportunidade mas não quis, preferiu ficar só com o reconhecimento paulista do DAC, ser piloto esporadicamente e checadora de pilotos em vários estados, além de voar com seu Seneca.

Mais informações sobre Graziela e as notícias sobre seu falecimento:


(Bem... por mim a primeira PLA brasileira foi mesmo minha personagem Cmte. Sônia. Isso talvez resolva a polêmica, rs...)


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