A FAKE NEWS
DO MINISTRO MÁRCIO FRANÇA
(por Solange Galante)
A transferência de voos do Aeroporto Santos Dumont (SDU) para o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão (GIG), para "salvar" este último, continua dando o que falar.
Muito já se comentou, em diversos órgãos de imprensa, que o problema não está no "Galeão", nem no "Santos Dumont", o problema é macro, está é no Rio de Janeiro.
Mas algumas declarações do ministro que já foi governador-tampão de São Paulo e prefeito da mais antiga cidade do Brasil (São Vicente), bem como deputado federal e vereador, com mandatos questionáveis ou quase irrelevantes (segundo várias fontes), mostram ou que ele não entende nada de mercado de tráfego aéreo ou quer colocar em sua vitrine política uma sonhada salvação daquele que deveria ser o principal aeroporto fluminense, que não o é não por culpa do Aeroporto Santos Dumont mas por tudo aquilo que França quer varrer para debaixo do tapete, com a ajuda do prefeito do Rio de Janeiro.
O estudo ANÁLISE CIENTÍFICA DA SITUAÇÃO DOS AEROPORTOS GALEÃO E SANTOS DUMONT assinado por Marcus Quintella e Marcelo Sucena, ambos da Fundação Getúlio Vargas - Transportes aponta diversos motivos que levaram o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro a ser o pesadelo da administradora RioGaleão e vergonha do país.
Apresentando os autores:
* Marcus Quintella é Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ. Mestre em Transportes pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Pós-Graduado em Administração Financeira pela EPGE/FGV. Engenheiro Civil pela Universidade Veiga de Almeida. Diretor do Centro de Estudos e Pesquisas FGV TRANSPORTES, editor-chefe do periódico científico Revista Brasileira de Transportes - RBT e professor e coordenador acadêmico de cursos de pós-graduação da FGV.
* Marcelo Sucena tem Pós-Doutorado pela COPPE/UFRJ. É Doutor em Engenharia de Transportes pela COPPE/UFRJ. Mestre em Engenharia de Transportes pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Graduado em Engenharia Elétrica pelo CEFET/RJ. Pesquisador sênior do Centro de Estudos e Pesquisas FGV Transportes e editor executivo do periódico científico Revista Brasileira de Transportes - RBT.
(informações do próprio estudo citado)
Já o ministro Márcio França estudou direito na Universidade Católica de Santos e presidiu o diretório acadêmico da instituição. Trabalhou como oficial de justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entre 1983 e 1992. Em 1989, assumiu o cargo de vereador de São Vicente, cidade da qual foi eleito prefeito em 1996 e reeleito em 2000, com 93% dos votos válidos. Em 2006, elegeu-se deputado federal, reelegendo-se em 2010. Em 2011, foi nomeado secretário de Esporte, Lazer e Turismo do Estado de São Paulo, no governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Em 2014, França foi eleito vice-governador na chapa de Alckmin. Após a posse, assumiu também a função de secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação. Quando Alckmin renunciou para concorrer à presidência da República em abril de 2018, França foi empossado governador. Candidatou-se à reeleição e recebeu 21,5% dos votos válidos no primeiro turno e 48,25% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2018, perdendo para seu adversário João Doria (PSDB). Com isso, ele se tornou o primeiro governador do Estado de São Paulo a ser derrotado em uma tentativa de reeleição. Nas eleições de 2022, concorreu ao cargo de Senador por São Paulo, disputando a única vaga disponível naquele pleito. Não foi eleito, ficando em segundo lugar, sendo superado por Marcos Pontes. Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para um terceiro mandato na presidência da República, França foi nomeado Ministro dos Portos e Aeroportos a partir de janeiro de 2023. (informações do Wikipedia).
Nenhum desses três senhores têm na biografia qualquer formação dirigida especificamente à aviação. Porém, o currículo dos dois pesquisadores da FGV dá muito mais subsídio para que saibam o que estão falando, digo, saibam o que escreveram, e saibam muito bem. De maneira totalmente isenta, inclusive.
Um documento antecessor a esse atual de 25 de abril 2023 foi outro, um artigo do ano passado, conforme citado na atual "Análise Científica": "Em 14/09/2022, em artigo publicado no portal da FGV, a FGV Transportes fez uma análise científica sobre a perda do protagonismo nacional dos aeroportos do Rio de Janeiro, com ênfase para a derrocada do GIG. Esse artigo retratava que, a partir de 2020, com a pandemia do Covid-19, houve grande retração no mercado de negócios e turismo no Brasil e em todo o mundo, e, em consequência, todas as companhias aéreas sofreram fortes turbulências, assim como os aeroportos, sendo que o GIG foi um dos mais atingidos." (...)
"Numa primeira análise, ainda baseada somente na observação matemática das séries históricas das movimentações de passageiros ocorridas em ambos aeroportos, nos últimos 8 anos, o citado artigo afirma que não há evidências numéricas de que o SDU 'sequestrou' passageiros do GIG. Entretanto, para que possamos chegar a alguma conclusão sobre a situação de GIG e SDU com base em fundamentação científica, o presente paper propõe o enriquecimento da discussão desse tema com a inclusão da análise da regressão linear múltipla, técnica estatística multivariada, para que possamos fazer inferências sobre as possíveis causas da queda na movimentação de passageiros do GIG, desde o início da pandemia até os dias de hoje, e da recuperação do SDU, no mesmo período, cuja movimentação de passageiros encontra-se atualmente no limite de sua capacidade. " (...)
Para não me prolongar aqui e deixar que os próprios leitores leiam e analisem o documento na íntegra – tem 10 páginas muito bem condensadas a respeito do tema – relaciono apenas alguns destaques do que os pesquisadores apuraram:
1) "Os dois principais aeroportos do Rio de Janeiro possuem vocações distintas." Interpreto dizendo que isso passa por seu entorno, acesso a atrações turísticas e centros de negócios, rede de transportes, segurança pública etc, bem como suas características físicas (tamanho de pistas, por exemplo).
2) "A Cidade Maravilhosa perdeu o protagonismo nacional para outras regiões brasileiras, especialmente no turismo, nos negócios e nas indústrias, além de estar sempre vinculada ao insolúvel e incontrolável problema da segurança pública, que atinge a sociedade e a economia do estado como um todo, e afeta sobremaneira a escolha do GIG como aeroporto preferencial, tanto pelos passageiros, como pelas companhias aéreas." (...) "A reversão da situação do GIG está fortemente relacionada ao nível de emprego, renda da população e crescimento do turismo. De um modo geral, essa inferência nos remete à premência da recuperação econômica do Rio de Janeiro, município e estado, que há muitos anos vem perdendo empresas, indústrias, negócios e turismo."
E a análise, mais adiante, conclui:
"(...) a melhor solução para o GIG passa pela recuperação da economia do Rio de Janeiro como um todo, para que o município e o estado voltem a atrair empresas, indústrias e turismo. Quanto ao quesito segurança pública, não basta o reforço da segurança das vias de acesso ao GIG, como as Linhas Vermelha e Amarela e Avenida Brasil, visto que o problema é a insegurança pública sistêmica na cidade, essa, sim, contribui muito para a decadência econômica do Rio de Janeiro."
"Não podemos simplesmente atribuir a redução da oferta de voos internacionais com origem no GIG à falta de integração com a malha doméstica conectada no Rio de Janeiro, nem levantar a tese de competição entre os dois aeroportos cariocas, uma vez que eles sempre coexistiram e, durante muitos anos, as companhias aéreas ofereceram voos para diversas capitais brasileiras com partidas do GIG e do SDU, pois assim o mercado demandava. Os números apresentados neste paper demonstram que os dois aeroportos tinham suas próprias demandas e conviveram harmonicamente até o final de 2019."
Link para a íntegra da Análise da FGV-Transportes:
https://transportes.fgv.br/sites/transportes.fgv.br/files/santos_dumont_e_galeao_26-04-2023_v.7.pdf
Outro especialista que realmente conhece o assunto é o professor Respício Antônio do Espírito Santo Jr, do Departamento de Transportes da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em matéria publicada na revista Aero Magazine número 348, de maio de 2023 (embora você não vá achar o mês de publicação na revista inteira), ele enumera também outros fatores que prejudicaram o Galeão, inclusive o fim da VARIG após o leilão de 2006, lembrando que aquela companhia aérea de bandeira do Brasil não só tinha seu hub no aeroporto internacional carioca como uma frota robusta incluindo widebodies e participava da Star Alliance. A empresa dispensa apresentações quanto à sua relevância no tráfego aéreo brasileiro e internacional e até mesmo a promoção que fazia quanto ao turismo local e nacional, atraindo passageiros estrangeiros e nacionais.
Entre outros fatores lembrados pelo professor especializado em transportes estão também o crescimento do agronegócio no interior paulista, no centro-oeste, região sul e em Minas Gerais, com aumento da renda per capita nessas regiões. Com isso, passageiros passaram a preferir ir direto para os aeroportos internacionais de Guarulhos (GRU), Confins (CNF), Campinas (VCP) e Brasília (BSB), onde as companhias aéreas concentraram seus voos e conexões. No caso específico de São Paulo, agora citando a região metropolitana, arredores e a própria capital paulista, ela passou a concentrar novas empresas (sedes e unidades de produção). Para que desembarcar no GIG, então?
A concorrência de outros estados brasileiros na concentração de eventos, feiras, congressos, turismo e negócios em geral também ajudou a esvaziar o Galeão. Eu acrescento: a Fórmula 1 saiu do Rio, veio para São Paulo, e aqui permaneceu e permanecerá por mais alguns anos, só a título de exemplo. Lembro, ainda, empresas que passaram a ter voos diretos para outras cidades por todo o Brasil, como a TAP Air Portugal. É, antes só se pensava em ir para o exterior via São Paulo, Campinas ou Rio de Janeiro. Agora há voos de várias empresas espalhados por Salvador, Manaus, Brasília, Fostaleza...
Hospedagem das tripulações também se tornou um fator preferencial para as companhias aéreas, especialmente as internacionais, em outras bases que não a cidade do Rio de Janeiro, com melhores acessos e custos menores, lembra o professor Respício.
Enfim, esses são os principais fatores, ou seja, um movimento natural incentivado pelo que não se corrigiu e "vitaminado" pelo que os outros destinos "off Rio" fizeram de lição de casa.
Mas, e onde entra a Fake News de Márcio França nessa história?
Assim mesmo, ipsis litteris. O que certamente fez muita gente, jornalistas e telespectadores, acreditarem nessa lorota.
O que ele teria querido dizer com "capacidade plena"? Se foi o movimento de tráfego existente antes das últimas crises, em especial a da covid-19, que impactou o mercado de aviação no mundo inteiro ?Embarques e desembarques nos níveis pré-pandemia? Consideremos isso, então, que é justamente o que parece.
Pois fui checar dados oficiais de alguns aeroportos brasileiros a esse respeito.
(quantidade de passageiros, domésticos + internacionais):
BRASÍLIA (DF) (JUSCELINO KUBITSCHEK)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril//2023
16, 6 milhões 13,4 milhões 5,6 milhões 4,7 milhões
GUARULHOS(SP) (ANDRÉ FRANCO MONTORO)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril/2023
43,0 milhões 34,8 milhões 14,3 milhões 12,8 milhões
CONFINS (BH) (TANCREDO NEVES)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril//2023
11,2 milhões 8,6 milhões 3,5 milhões 2,4 milhões
PORTO ALEGRE (RS) (SALGADO FILHO)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril/2023
8,2 milhões 6,5 milhões 2,6 milhões 1,6 milhões
MANAUS (AM) (EDUARDO GOMES)
2019 2022 Jan-Abril/L/2019 Jan-Abril/2023
3,0 milhões 2,2 milhões 981 mil 480 mil
SALVADOR (BA) (LUIZ EDUARDO MAGALHÃES)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril/2023
7,7 milhões 1,3 milhões 2,7 milhões não publicado
SÃO PAULO (SP) (CONGONHAS)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril/2023
21,9 milhões 18,0 milhões 7,5 milhões 6,6 milhões
RIO DE JANEIRO (RJ) (GALEÃO)
2019 2022 Jan-Abril//2019 Jan-Abril/2023
13,5 milhões 5,8 milhões 4,5 milhões 2,4 milhões
RIO DE JANEIRO (RJ) (SANTOS DUMONT)
2019 2022 Jan-Abril/2019 Jan-Abril/2023
8,9 milhões 10,1 milhões 3,0 milhões 3,8 milhões
Bem, se foram "todos", segundo o digníssimo, vamos excluir esses citdados fora do Rio. Que são alguns dos mais movimentados do país. Pode-se ver que nem mesmo o SDU "voltou à sua capacidade plena" pois, nesse caso, e só nesse caso, ele até a superou. Sinal de que lá os passageiros e cias. aéreas estão conseguindo operar bem.
Márcio França, enfim, quer enfiar pela goela abaixo da opinião pública que:
1) O Galeão é o único aeroporto subutilizado no Brasil (pelo menos em relação ao desempenho antes e depois da pandemia);
2) O problema do Galeão é o aeroporto Santos Dumont, então isso se resolve na canetada;
3) O Rio de Janeiro continua lindamente atraente, mesmo para quem buscou outros destinos para lazer, investimentos ou negócios.
Será que ele foi "apenas" mal orientado?
E para não dizer que não falei das flores, eu afirmo que o GIG, visto do alto, na minha opinião, é o aeroporto mais bonito do Brasil, digno de uma cidade que merecia continuar maravilhosa mas vem sendo degradada, mal cuidada, pilhada, esquecida. É realmente uma pena que o projeto inicial, hoje considerado jurássico, de quatro meias-luas que comporiam seus terminais (sim! os planos eram esses!) não tenha saído do papel por N razões, e que, justamente como fator principal, o GIG não tenha alcançado a quantidade de tráfego desejada desde sempre, com suas pistas enormes, pátios extensos, localização privilegiada (excetuando-se os fatores de falta de interligação rápida e segura com os transportes terrestres).
Infelizmente, não será um ministro completamente amador nesse métier e aparentemente sem a mínima vontade de enxergar e/ou assumir a realidade que irá resolver as consequências de um processo de ferrugem que se desenrola há décadas com uma canetada e uma ou várias fake news.
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