sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

PÉROLAS VOADORAS!

"MILAGRE"??? COMO ASSIM???

(por Solange Galante)

Nesta semana dei de cara com esta manchete:


Milagre a 11 mil metros: bebê nasce em avião durante voo da Qatar Airways


Ansiosamente, li o texto todo mas...

Cadê o tal "milagre"?

Resumindo o ocorrido: Uma cidadã tailandesa deu à luz um bebê com a ajuda de um outro passageiro (médico) e da tripulação de cabine de um avião da Qatar Airways, em um voo de Doha para Bangkok (Tailândia). O que fez os pilotos decidirem pousar o avião em Calcutá, na Índia. Mãe e bebê passam bem.

A propósito, a fonte original foi este link (https://www.indiatoday.in/india/story/thailand-woman-delivers-baby-on-board-qatar-flight-kolkata-airport-1643087-2020-02-04).

Que em momento algum compara o caso a um "milagre".

O fato (uma criança nascer saudável em um avião, em voo) é taããããão "miraculoso" que no dia 9 de dezembro de 2019 ocorreu também em um voo da Gol entre Rio de Janeiro e Santiago do Chile. O Boeing nem saiu do espaço aéreo brasileiro, e o avião pousou em emergência em Porto Alegre. Mãe e bebê também passam bem. O pouso de emergência é padrão quando pacientes precisam de cuidados médicos especiais, sem que isso signifique que o voo tenha corrido riscos.

Bebês não nascem apenas em hospitais ou em casas. Também nascem em carros de polícia, ambulâncias, na rua, em barcos, trens, mesmo em elevadores. Isso tudo é raro, inusitado mas, para ser milagre, ou seja, significado emprestado de religiões e definido normalmente como "acontecimento extraordinário, incomum ou formidável que não pode ser explicado pelas leis naturais" (conforme vários dicionários que consultei) tem uma distância pra lá de grande. Quilométrica...

Conforme o link http://igor.gold.ac.uk/~co304so/skyborn.html, o primeiro caso registrado de parto a bordo ocorreu no longínquo 1929 – há quase cem anos! E só na British Airways, cinco nenês nasceram em seus aviões, desde 1990. O site informa que nascimentos nunca foram devidamente catalogados pelas companhias aéreas mas pelo menos 48 (antes do caso da Qatar) já haviam sido registrados.


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Mas o site abaixo atingiu seu objetivo: chamou a atenção, prendeu a atenção do(a) leitor(a). Usando, porém, o recurso do "Sensacionalismo".




O ícone do sensacionalismo impresso (não aeronáutico), hoje já extinto, chamava-se Notícias Populares. Um jornal de São Paulo que tinha o seguinte lema "Nada mais que a verdade" (Será...?).
Algumas de suas manchetes históricas:
"Nasceu o diabo em São Paulo"
"Papai Noel assassinado no pacotão do governo"
"Broxa torra o pênis na tomada" 
"Cobra na privada ataca moça pelada"


Segue trecho de um  texto do site "Observatório da Imprensa" de 2011, por ocasião do lançamento do livro, revisado e atualizado, "Nada mais que a verdade – A extraordinária história do jornal Notícias Populares". O ano também marcou o décimo do fim do Notícias Populares, que não suportou a concorrência de outros jornais e programas de TV igualmente sensacionalistas. Segue o texto do Observatório:  "A intensidade era a tônica do NP. O jornal viveu um período difícil depois da morte de Mellé, em 1971. Com a troca de comando, as vendas despencaram de 100 mil para 25 mil exemplares. Mas Ebrahim Ramadan, contratado como novo editor, mudou novamente os rumos da história. Para alavancar as vendas, ele investiu em uma overdose de crime e sexo nas páginas do jornal. Para o bem e para o mal, figuras folclóricas, como a mula sem cabeça, as almas penadas, os monstros e os demônios tornaram-se personagens importantes no universo do Notícias Populares, ao lado de alienígenas e outras aberrações."

Nada mais do que a verdade? Sobre o título acima citado ""Nasceu o diabo em São Paulo", tratava-se, na verdade (Ver-da-de) de um pobre bebê que havia nascido com deformações. E os jornalistas do NP aproveitaram-se dele para inventar uma série de reportagens que iam se desenrolando no decorrer das edições. Para os leitores, os fatos eram apresentados realmente como verídicos. Ah, o mais famoso apelido do NP era "Espreme que sai sangue"...

Da mesma maneira o jornal alemão Bild, que existe até hoje, escreveu na década de 1980 que piranhas, de um aquário de uma exposição, haviam praticamente dilacerado a mão de um expositor, mas ele havia apenas levado UM (um único) ponto no dedo ao inadvertidamente ter colocado a mão no aquário numa transferência dos peixes... e isso ocorrera oito anos antes! É que o objetivo era dar audiência à exposição de peixes na Alemanha (e deu!!!).

Esse é o resultado do "Tudo por mais audiência, mais vendas, ou mais curtidas e visitas." Prática que costuma ser (muito) recorrente, contínua.

Considerando que a aviação ainda é o meio de transporte mais seguro do mundo (depois do elevador), mas, ainda assim, tem um grande índice de letalidade dependendo da maneira em que ocorre o acidente, muito mais miraculosas são as sobrevivências, isto sim, como as relatadas no link a seguir da Revista Veja, como por exemplo, o caso da aeromoça Vesna Vulovic que, em 1972 caiu, pasmem, de um avião (que explodiu) a 33 mil pés sobre uma montanha de neve. Ela se quebrou toda, mas sobreviveu sim. Inclusive, é dela ó recorde mundial de sobrevivência da maior queda sem para-quedas, como diz a revista. 

https://veja.abril.com.br/mundo/na-historia-da-aviacao-apenas-13-sobreviveram-sozinhos-a-desastres-aereos/

Voltando à matéria que é o objeto dessa análise, conversando com amigos e também colegas eles tiveram a mesma percepção que eu: esse nascimento dentro do Boeing da Qatar Airways poderia ser considerado "milagre" se, por exemplo, o bebê nascesse vivo, até por força do impacto, durante a queda do avião. Isso já aconteceu num acidente rodoviário ocorrido em 2018 na Rodovia Régis Bittencourt mas é muito mais improvável num acidente aéreo pela muito mais violenta desaceleração.

A imprensa sensacionalista sempre tem e terá seu público cativo mas, cada vez mais, leitores, espectadores, ouvintes, internautas etc buscam seriedade e correção. Pena que nem sempre a qualidade da audiência vence a quantidade de audiência.



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