Acima, foto do local atingido
pelo B-25 Mitchell no Empire State Building, em Nova York, que resultou em 11
mortes e 26 feridos e teve como fator preponderante um fator meteorológico (denso nevoeiro).
(crédito:
domínio público)
Um
fato inédito na cidade de São Paulo – e que, graças a Deus, jamais se repetiu –
ocorreu em um sábado muito chuvoso, o dia 24 de março de 1979. Até então,
aquele parecia um sábado como tantos outros em Moema, um bairro nobre da cidade.
Por volta de 19h30, a
professora de sociologia da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) Miriam Gomes
da Silva, 40 anos de idade, juntamente com uma amiga, desceu do 15º andar do
Edifício Marajó, onde residia. Como a chuva estava intensa, ela subiu de volta
ao apartamento para dar um telefonema – claro, eram tempos em que telefones
celulares ainda não estavam disponíveis no Brasil – pois resolveu ir buscar seu
filho Wagner Roberto, de 13 anos, no clube de escoteiros que ele frequentava, embora
não fosse muito distante de lá. Normalmente, ele voltava sozinho para casa mas,
diante de tal volume de chuva, a professora percebeu que, se o filho ficasse no ponto de ônibus, ele ficaria
encharcado e, se ficasse abrigado dentro do clube, não veria o ônibus passar.
Então, após avisar o clube resolveu pegar o automóvel e ir buscá-lo.
Ninguém ainda sabia como a decisão de
Miriam simplesmente salvou sua própria vida naquela noite.
Muito pouco tempo depois,
em frente ao Edifício Marajó, Adélia Lapenta Barbosa e sua família jantavam em
casa. Eram aproximadamente 19h45 quando a família foi surpreendida pelo barulho
de uma explosão e o clarão que iluminou brevemente a noite. Todos correram para
a porta e olharam para cima. Havia um incêndio no vizinho Edifício Marajó. E
lâminas de fogo caíam no jardim do mesmo prédio.
Em outro curto espaço de
tempo, a professora Miriam já estava voltando para casa com o filho quando
percebeu um grande tumulto justamente na esquina das ruas Ministro Gabriel
Resende Passos e Inhambu, bem onde fica localizado o Edifício Marajó. Uma
multidão formada por seus vizinhos e dezenas de curiosos dividia espaço com carros
de bombeiros recém-chegados, algum já com escadas Magirus estendidas.
Horrorizada, Miriam
olhou para cima e viu chamas no andar onde ela residia!
Sem pensar duas vezes, como
ela contou em uma entrevista, rompeu a multidão, tomou o elevador e, chegando à
entrada do apartamento 151 deu de cara com homens do corpo de bombeiros combatendo
um incêndio exatamente na biblioteca onde, até menos de meia hora antes, a
professora passara a tarde inteira preparando aulas.
Boa parte de sua
residência estava destroçada. Um avião bimotor havia colidido contra o edifício
e se dividira em dois dentro do apartamento. O motor direito, que arrebentou a
biblioteca ao lado do banheiro, ficou onde estava a mesa de trabalho da
professora. A parte traseira da cabine e a cauda ficaram do lado de fora,
enquanto gasolina em chamas escorria pela fachada lateral externa atingida. E
três mortos, os ocupantes da aeronave, estavam no banheiro.
Mas talvez nada se
comparasse ao flagrante presenciando pela empregada doméstica Maria de Fátima
Góes. A pernambucana de 21 anos, que trabalhava e residia no apartamento 161 do
mesmo edifício, atraída pelo som da tempestade, foi à área de serviço checar a
intensidade da chuva mas o que viu foi muito pior do que poderia imaginar.
Segundo ela se recordaria “Vi um negócio bem grande entrando no prédio, seguido
de dois fortes abalos e uma explosão! Surgiu uma chama que quase queimou meu
rosto e muita fumaça! Pensei que o prédio estivesse caindo! Ajoelhei, depois,
não vi mais nada!”
O “negócio” era,
simplesmente, uma das asas do avião bimotor que havia colidido com a lateral do
prédio e atingido principalmente o 15º andar na lateral dos apartamentos que
davam frente para a rua Ministro Gabriel Resende Passos.
O dono do apartamento
161 jantava com as quatro filhas e a esposa e correu até a área de serviço tão
logo ouviu o barulho, e ali viu, além do fogo, Maria de Fátima desmaiada. Ele
não teve tempo para pensar em mais nada e carregou a empregada, bem como sua
filha de três anos, para fora do apartamento e mandou os demais familiares
descerem pelas escadas. Aliás, vários moradores tiveram a iniciativa de evacuar
o edifício e a evacuação foi tranquila, apesar daquelas circunstâncias.
Sobre fotos recentes, a localização da colisão contra o Edifício Marajó.
(crédito: Google)
No momento da colisão, o apartamento 174, na ala dos apartamentos que davam frente para rua Juriti, paralela à Gabriel Passos, também estava ocupado. Lá morava Isaltino Brochado Neto. Quase 46 anos
após o ocorrido, esta repórter conseguiu localizá-lo e ele conseguiu se
recordar de muitos detalhes daquele fatídico sábado. Ele conta: “Eu estava em casa, deitado no sofá, e minha
ex-esposa estava sentada numa poltrona, com uma almofada amparando-a de cada
lado.”
Grávida, a então esposa de Isaltino
aguardava o primeiro filho do casal, que estava prestes a nascer.
“Quando houve aquele estrondo, eu falei
assim: “Nossa, deve ter acontecido uma explosão de gás!” mas minha mulher
comentou “Não pode ser, aqui é gás encanado.”
Pela porta da cozinha, Isaltino pôde ver
um clarão. Ele cruzou a cozinha,
chegou à
área de serviço e, quando abriu a janela da área viu um pedaço de
asa de avião incrustrado no apartamento da dona Miriam, no 15º andar.
O bimotor atingiu diretamente o 15. andar do Edifício Marajó exatamente no apartamento 151, também afetando parcialmente os apartamentos 161 e
141. Essa fachada fica diante da rua Inhambu. Na seta, janela da área de serviço
do apartamento 174, de onde Isaltino B. Neto descobriu o que havia
acontecido.
(crédito: Jornal da Tarde - reprodução)
Croqui mostrando localização dos apartamentos de final 1, 2, 3 e 4 e onde o avião atingiu o prédio. No apartamento 151, o cômodo destinado à empregada doméstica era a biblioteca da professora Miriam.
(crédito: Isaltino Brochado Neto)
Ele foi um dos
moradores que percebeu o silêncio que antecedeu a colisão – com a proximidade
do Aeroporto de Congonhas, a cerca de dois quilômetros dali, não era nada
normal a aproximação silenciosa de uma aeronave, inclusive com as luzes
externas apagadas, como outras testemunhas perceberam, e sem contar que o avião estava completamente fora da rota
normal conhecida, como depois todos perceberiam.

Localização
do edifício atingido, completamente fora da trajetória correta de
aproximação final para a então pista 16 R do Aeroporto de Congonhas.
Colocado no mapa também, o Shopping Ibirapuera é referência bem
conhecida, sendo sempre sobrevoado, até hoje, pelas aeronaves quando a
pista em uso é a atual 17 R ou 17 L.
(crédito: arte sobre Google Maps)
Uma longa noite estava apenas começando
para Isaltino. Simplesmente, há menos de dois meses ele passara a ser o
subsíndico do Edif. Marajó. O síndico em si estava viajando – alertado sobre o
ocorrido, ele anteciparia seu regresso e no domingo já estava de volta – e, por
sorte, o síndico anterior encontrava-se no prédio. “E ele estava com
pneumonia...” lembra Isaltino, que hoje ri do conjunto da situação toda, mas por
puro nervosismo, por relembrar dos momentos tensos e inusitados em que se
tornou um dos protagonistas, representando o condomínio em uma situação jamais
imaginada que poderia um dia acontecer. “O pepino sobrou para mim”, ele disse.
Isaltino nunca havia tido antes a ideia de ser subsíndico, até o momento de
formar uma chapa, vencedora por sinal, com outro morador do 17º andar com o
objetivo de resolverem um problema de infiltração no solário da cobertura.
Formando em Engenheira Elétrica e com
então 25 anos de idade, ele teve duas preocupações iniciais. Primeiro, ligou na
portaria e pediu para o porteiro chamar os dois
elevadores para o térreo e desligá-los. Pois via fogo escorrendo pela fachada e
não tinha ideia do alcance do incêndio.
Isso feito, a providência seguinte e
urgente passou a ser tirar a esposa de lá. “Ela já tinha estado na maternidade,
o médico conseguiu segurar o neném mais uns dias. Meu primeiro filho nasceria
cerca de 17 dias depois” – ele se recorda. O casal começou a descer a escada e,
chegando ao 15º andar,
Isaltino encontrou o
zelador, sozinho, tentando inutilmente arrombar a porta do apartamento 151,
onde ele desconhecia se a professora Miriam estava ou não em casa.
Como todas as pessoas estavam descendo
pela escada, Isaltino disse para a esposa ir descendo também, devagarinho, “não
dá pra correr com essa barriga” e acrescentou que iria tentar ajudar o zelador
a arrombar a porta do 151. Foi quando chegaram dois moradores fortes para
ajudar. Eles pularam duas vezes naquela porta e foi o suficiente para conseguirem
estourar a fechadura e entrar. Isaltino já tinha puxado a mangueira de incêndio
para o combate inicial ao fogo e avisou os três homens que iria descer, porque precisava tirar a esposa dali,
preocupado como estava se, diante de toda aquela tensão, seu filho já iria nascer
ou não. O zelador e os dois moradores conseguiriam extinguir o foco inicial do
incêndio
O subsíndico desceu correndo, passou
pela portaria, pediu para seu pessoal, que já havia chamado o corpo de
bombeiros, para fechar a portaria e pedir para as pessoas ficarem do lado de
fora, “e ninguém entra, a não ser que chegue
aqui alguém da Força Aérea,
ou alguém que se
responsabilize pelo prédio”. Mas pediu também para não desligarem a
eletricidade, pois o prédio não tinha gerador de emergência e as pessoas
precisariam de iluminação para descer as escadas. E foi levar a esposa até a
casa de seus pais em Higienópolis.
Foi justamente enquanto ele levava a
esposa para um lugar seguro que a professora Miriam chegou e subiu.
“E quando eu cheguei de volta” – disse o
subsíndico – “os bombeiros já tinham apagado em definitivo o incêndio, bem como já tinham liberado o uso dos elevadores
porque eles tinham constatado que a colisão não tinha causado nenhum dano
excessivo” recorda-se.
“E é aí que eu subi até
meu apartamento, peguei a mala do nenê e desci, porque aí
meu cunhado estava junto comigo e levaria para minha ex-esposa.”
Mas
o condomínio permanecia fechado
para os demais moradores. Situação em que sempre aparece alguém querendo
quebrar uma regra, como foi o caso de um senhor dizendo que ele era um delegado
e queria subir. Ele apresentou
uma identidade
mostrando que era delegado do Detran (Departamento de Trânsito) e foi
aconselhado, então, a cuidar das ruas do entorno do edifício, e não do acidente
aéreo lá em cima, porque havia o risco de cair algum pedaço do avião em cima
dos carros na rua e até provocar um novo foco de um incêndio lá embaixo também.
Mas ele insistia em subir, ameaçou
prender quem o impedisse, e só foi desencorajado diante da quantidade de repórteres
que estavam filmando tudo, até sua teimosia.
Para a sorte de Isaltino, nesse momento
chegou o pessoal da FAB, que iria tomar conta da situação. O subsíndico apenas
pediu a eles permissão para ele e também para o ex-síndico poderem circular
pelo prédio para cuidar da segurança dos apartamentos e dos moradores.
Assim foi feito e os dois subiram,
indo de apartamento em apartamento,
porque muita gente havia
saído largando a porta aberta. Elas foram fechadas e as chaves recolhidas em uma caixa para os condôminos pegarem
depois.
Pelo
que Isaltino se recorda, teria sido no 2º ou 3º andar, apartamento 23 ou 33, onde,
quando o ex-síndico tocou na porta verificou que estava aberta e parecia que
haviam saído e deixado a televisão ligada. Ele, então, entrou para desligar a
TV e surpreendeu-se ao ver uma senhora idosa lá dentro assistindo a algum
programa – e ela se assustou com aquele homem entrando. A moradora sequer sabia o que estava acontecendo, não
havia ouvido nada. A empregada que residia com ela havia
saído correndo e disse, depois, que havia gritado para a patroa “vamos sair que
teve um problema!” mas a idosa achou que a empregada havia saído para comprar
alguma coisa e permaneceu lá. Ficou nervosa quando o visitante inesperado
contou o que havia acontecido mas ele logo pediu-lhe calma, explicou que os
bombeiros já haviam apagado o incêndio e o pessoal da Força Aérea estava
resolvendo a situação do avião, e ajudou-a a descer.
Quando Isaltino entrou no apartamento
151 já sem incêndio, a imagem era degradante. Segundo ele, dos três ocupantes
do avião, apenas um dos corpos estava inteiro, tendo sido jogado para a frente
dos outros, mas todos ficaram dentro do banheiro da residência.
Cerca de três horas após a colisão, uma
das partes da cauda da aeronave que havia ficado do lado de fora do
apartamento, desprendeu-se e caiu sobre o jardim, causando um estrondo. Enquanto
isso, já estava sendo instalado um sistema de guincho na
cobertura do prédio e, após
mais meia hora aproximadamente, o restante do avião cravado na parte externa,
já amarrado pelos bombeiros, começou a ser arriado por cordas até o chão, para
a decepção dos curiosos que, na manhã do domingo, sob dia claro, já estavam lá
nas ruas vizinhas tentando ver o avião espetado no edifício.
Os motores também desceram graças
ao guincho. “Isso foi concluído, se não me falha a memória, por volta das 2 h da
madrugada do dia 25” disse Isaltino.
Restaram as manchas de
fuligem provocadas pela explosão, incêndio e combustível que escorrera pela
fachada. O então subsíndico lembra que a
gasolina em chamas que havia escorrido havia chegado a penetrar nos vãos de respiração da garagem,
junto ao jardim do térreo, mas, felizmente, sem atingir os automóveis lá
dentro.
Representantes da construtora do
edifício, que era novo e tinha então apenas seis anos desde inaugurado, inspecionaram todo o
prédio após os destroços terem sido removidos e concluíram que nenhuma
estrutura principal havia sido atingida. A seguradora, além da restauração da
área comum (externa) assumiu também a restauração do apartamento da professora
Miriam que, com o dia claro no domingo, pode presenciar melhor os danos. Ela
tinha o coração estraçalhado pela perda de sua biblioteca. O fogo havia
consumido cerca de 1.500 livros, a maioria deles sobre sociologia, inclusive
alguns exemplares raros. A tarde do dia 24 de março havia sido a última em que
ela teve a companhia deles. Segundo ela, o
que perdeu de livros seria um valor maior que o próprio valor do apartamento.
Os apartamentos 161 e 141 foram outros
afetados diretamente pela colisão e incêndio, embora menos que o 151. O susto
havia sido grande mas, por muita sorte ou por um grande milagre, especialmente
para a professora da FMU, nenhum dos moradores havia se ferido. No entanto, o
avião transportava aquelas que viram a ser as três vítimas fatais: o
empresário e piloto Paulo Ernesto Robba, de 37 anos, sócio de uma empresa de
Engenharia; Hugo Francisco Boggio, engenheiro e marido da repórter Isabel C.
Dias de Aguiar Boggio, da editoria de economia do jornal Folha de S.Paulo, e o
promotor público da cidade de Águas da Prata, Carlos Siqueira Neto.
Na segunda-feira à noite, no salão de
festas do Edifício Marajó,
um padre rezou uma
missa com a presença dos moradores para ajudar a tranquiliza-los.
Isaltino continuou morando no Edifício a
tempo de acompanhar toda a restauração mas, em 1980, já estava se mudando para
Goiânia. O Edifício Marajó permanece firme e forte no local e o apartamento
174, de propriedade do irmão do ex-subsíndico, hoje está alugado.
Vinte e sete anos
depois, Isaltino perderia, no acidente com o voo 402 da TAM, que havia decolado
de Congonhas rumo ao Rio de Janeiro, um grande amigo, que não era para estar
naquele voo – mas havia perdido o voo anterior –, ao mesmo tempo em que seu
irmão e um colega de empresa salvaram-se do desastre com o mesmo avião da TAM e o mesmo voo
onde deveriam estar, pois não chegaram a tempo de embarcar no Fokker 100.
Isaltino, por sua vez, viajou muito de avião a trabalho, especialmente entre
Florianópolis e São Paulo mas, no ano passado “aposentou-se” como passageiro
frequente, para poder permanecer mais em casa, e trabalhando em home office.
A
APURAÇÃO DA AERONÁUTICA
Mas,
por que o bimotor estava fora de rota, e entrou em rota de colisão com um
edifício de 17 andares?
Segundo o relatório do SIPAER
– Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – a que tive
acesso – embora a data do acidente esteja indevidamente catalogada como 25 de
março, tendo ocorrido na verdade no dia 24 de março – a aeronave PT-IKT, um
Piper PA-34-200 (Seneca II) com número de série 34-7350162 e autorizada apenas
para voos visuais (VFR) diurnos havia decolado à noite de um aeródromo em Mogi-Mirim
não homologado para tal para São Paulo (SP). Para justificar a
etapa noturna, que executaria dentro da Terminal São Paulo, seu piloto havia
declarado ao Controle que procedia de um campo mais distante, no caso, a Fazenda
Prata, supostamente em Ourinhos (SP), cidade aonde o piloto teria se dirigido
antes de seguir para a capital, segundo seu irmão.
Informações do morador
Isaltino Brochado Neto, o subsíndico do Edifício Marajó, que acompanhou o caso
e tinha um amigo na aviação comercial, o destino do bimotor era, na verdade, o
Campo de Marte mas, devido à forte chuva, esse aeroporto estava fechado, de
modo que a alternativa para o avião seria o Aeroporto de Congonhas.
Dez minutos após a decolagem
o piloto Robba entrou em contato com o Controle São Paulo, que o vetorou até
que interceptasse o curso do Localizador do ILS, a quatro milhas do Marcador Externo do
procedimento ILS para a pista 16 (hoje, 17). Observação: naquela época, apenas
a pista 16 possuía equipamentos para pouso por instrumentos de precisão (ILS).
Em seguida, Robba
informou à Torre São Paulo que havia bloqueado o Marcador e estava com trem de
pouso baixado e travado. O controlador liberou seu pouso informando que chovia
forte sobre o aeródromo. Porém, o piloto arremeteu logo em seguida, sem
informar à Torre os motivos da sua arremetida.
Imediatamente, a Torre instruiu-o a chamar novamente o Controle SP para iniciar novo
procedimento. Desta vez, a vetoração foi feita até duas milhas do mesmo Outer Marker. No bloqueio do marcador
Robba informou que havia avistado a pista e, novamente, que estava com trem
baixado e travado. Encontrava-se a aproximadamente duas milhas náuticas da pista
16 R e o controlador avistou seus faróis. Disse-lhe “livre pouso” e desviou os
olhos para atender outra aeronave, que aguardava na posição 2 para decolagem.
Perdeu, então, contato visual com o Seneca, sem ter recebido nenhuma mensagem
do piloto; suspendeu temporariamente as operações em Congonhas e realizou 21
chamadas ao Índia Kilo Tango, sem receber resposta.
Pilotos que frequentavam
o Aeroclube de São Paulo, onde, inclusive, Robba havia concluído seu curso de
piloto privado em janeiro de 1975, foram entrevistados por uma emissora de
televisão (a TV Tupi) e levantaram a hipótese de Robba ter se confundido ao
dizer que avistava a pista quando na verdade talvez tivesse avistado uma das
avenidas da região do Parque do Ibirapuera, já que tentava voar sob condições
visuais mesmo à noite e sob chuva pesada, prática condenada e chamada informalmente
de “visumento”. Ele também seria um piloto que voava com pouca frequência – no
relatório da Aeronáutica constava um total de apenas duas horas e meia nos
últimos 30 dias – e seu avião estaria hangarado e parado há cerca de um mês no hangar do
Aeroclube.
A investigação
verificou que, no momento em que deixou de ser avistado pelo controlador, a
aeronave havia desviado abruptamente para a esquerda, num ângulo aproximado de
40 graus com o rumo do curso do Localizador, em trajetória descendente e terminando
por colidir com o edifício de apartamentos em atitude levemente cabrada, na
altura do 14º andar.
Os investigadores
apuraram também que as hélices não estavam tracionando no momento do impacto, o
tanque de gasolina esquerdo estava sem combustível suficiente para ser
utilizado, o tanque direito tinha 19 litros ainda, mas apenas 9,5 l utilizáveis
e ambas as seletoras de combustível, bem como seus comandos, encontravam-se na
posição de alimentação cruzada (Cross-Feed ou X-Feed).
Com isso, os peritos
levantaram duas hipóteses para o acidente com o bimotor:
1) Normalmente, durante
o voo, as seletoras são colocadas em posição “Aberto” (“ON”), onde o motor
direito é alimentado pelo tanque direito e o motor esquerdo, pelo tanque
esquerdo. Diante da falha de um dos motores por pane seca, o piloto teria que
realimentá-lo com combustível do tanque oposto mediante a seleção de “X-Feed” e
executar procedimento de partida do motor.
No caso do acidente com
o IKT era possível que o piloto, surpreendido com uma pane no motor esquerdo,
situação tão delicada em fase crítica de voo – aeronave configurada para pouso,
situação meteorológica adversa, voando IFR e com baixa velocidade – teria
colocado AMBAS as seletoras em “X-Feed”, até mesmo por desconhecimento do
procedimento correto para tal emergência.
Na reconstituição dos PROVÁVEIS
procedimentos executados por Robba, o Centro Técnico Aeroespacial (hoje DCTA)
verificou que, estando o motor esquerdo parado por falta de combustível no
tanque e o motor direito ainda funcionando, ao serem posicionadas ambas as
seletoras em alimentação cruzada, o motor direito, com o seguinte regime – 30
Pol HG/Passo mínimo/Mistura Rica – após 20 segundos também teria parado.
Ao se analisar o
esquema do sistema de combustível do Seneca II, com ambas as seletoras em “X-Feed”
haveria, logicamente, uma inversão na alimentação: o motor direito consumiria a
gasolina do tanque esquerdo e motor esquerdo, o combustível do tanque direito.
Mas, estando o tanque esquerdo sem combustível utilizável, o motor direito
inevitavelmente pararia de funcionar e o motor esquerdo, alimentado pelo tanque
ainda com combustível, retornaria ao seu funcionamento normal se fosse acionado
o sistema de partida – caso a hélice não estivesse girando em molinete.
Para definir essa
hipótese, faltou aos investigadores encontrar componentes vitais (magnetos,
bomba elétrica etc) que poderiam comprovar se o piloto procedeu ou não à
tentativa de religar o motor esquerdo. Mas, embora não tenham sido encontrados,
a suposição de pane elétrica total foi descartada, pela indicação efetiva de instrumentos
elétricos encontrados junto aos destroços. Apesar da aeronave ter atingido o
prédio sem iluminação externa.
Em uma aeronave sem
gravadores de dados de voo, o que era um fator a dificultar, a investigação
teve que levantar ainda uma segunda hipótese para o ocorrido.
2) Caso Robba tenha
percebido o baixo nível de combustível do tanque esquerdo, sua primeira ação
seria justamente acionar o “X-Feed” da seletora desse tanque para manter
alimentado o motor do mesmo lado com combustível do outro tanque (direito),
seguindo o manual da aeronave. Como a tomada de alimentação do tanque fica em
um nível acima da quantidade de gasolina residual (9,5 l), os dois motores
utilizariam os 9,5 l restantes, do total de 19 l marcados como quantidade do
tanque. Mas, ainda assim, o avião não estaria completamente seguro. Porque as
variações em atitude e inclinação das asas da aeronave poderiam provocar o
escoamento da gasolina para áreas do tanque que, distantes do acesso à tomada
de alimentação, forçariam a bomba a succionar ar para as linhas de combustível,
o que poderia causar a falha de um ou de ambos os motores. Na dúvida, ou até
mesmo no desespero, Robba teria colocado ambas as seletoras em “X-Feed”,
provocando a situação anterior (hipótese 1)
Ao ouvir testemunhas (reabastecedores)
e cruzar informações da documentação pertinente (Caderneta Individual de Voo do
piloto) a investigação concluiu que o Seneca não possuía combustível suficiente
para ir a uma alternativa mais 45 minutos de voo, dentro da legislação em vigor
na ocasião. O piloto ainda arriscou-se em ir para um aeródromo de destino que
poderia ser interditado a qualquer momento, devido às condições meteorológicas
– tendo sido a intenção inicial pousar no Campo de Marte, antes da opção
Congonhas, foi justamente o que ocorreu.
Um detalhe técnico
muito importante e que poderia ter contribuído para o acidente no caso em
questão estava bem perto do piloto.
Foi verificado que os
comandos das válvulas seletoras de combustível não possuIam travas ou sequer
algo que pudesse mantê-las na posição “ABERTA” (“ON”), permitindo, assim, que
passassem para a posição “FECHADA” (“OFF”) diretamente, sem paradas, sem
relevos, sem saliências. E mesmo a posição ocupada pelo painel de comando das
seletoras, entre os assentos dianteiros, era vulnerável a mudanças
inadvertidas. As próprias alavancas, pelo uso continuado, poderiam se tornar
ainda mais macias ao serem movimentadas. Nessa situação, Robba poderia até
mesmo ter colocado uma delas em “OFF” sem querer.

Localização da seletora de combustível entre as poltronas do Seneca II
(Fonte: canal Passion Aviation (reprodução) https://www.youtube.com/@passionaviation1741)
Na colocação
intencional para a posição “X-Feed” as alavancas passam obrigatoriamente pela
posição “FECHADA” (“OFF”). Não se descarta uma pane de trava da válvula nesta
posição, desligando o motor por falta de alimentação.
Isaltino, o subsíndico
do Edifício atingido pelo avião, levantou uma terceira hipótese, a partir de
comentários que circularam pela aviação – ele teria tido acesso a essa hipótese
a partir de um amigo pessoal, que era piloto
da Varig. Comentava-se que a bolsa de um dos ocupantes teria se enroscado nas
chaves do painel da seletora de combustível, localizada, como foi citado, entre
os bancos dianteiros do avião. Isaltino lembra que, na época, os homens
costumavam andar com uma bolsa a tiracolo, com uma alça longa.
TRADUÇÃO
COM ERROS E OMISSÕES

O PT-IKT era um Piper
“Seneca II” fabricado nos Estados Unidos – lembrando que o Brasil também
produziu aeronaves da linha Piper, por alguns anos, sob licença, pela
Embraer/Neiva. Embora homologado pelo DAC – Departamento de Aviação Civil (antecessor
da ANAC) o Manual do Piloto, em sua tradução para o português, apresentava,
segundo a investigação, erros e omissões:
a) No item que se
referia a “Operação Cross-Feed e monomotor” o texto original da fabricante
dizia que “A X-Feed é provida para aumentar o ALCANCE durante uma operação
monomotor” – o destaque em “alcance” foi feito pela investigação.
Mas a tradução em
português, no manual, dizia “O X-Feed é determinado para acrescentar VELOCIDADE
durante uma operação monomotor” – idem acima para esse destaque em “velocidade”.
No destaque acima para essa página do manual original, a seta vermelha inferior chama a atenção para que não se deveria colocar ambas as seletoras em "X-Feed".

b) Uma omissão
fundamental no manual traduzido na época – acrescentado apenas posteriormente, conforme imagem acima – refere-se a uma nota importante emitida pela
Piper, constante no manual original em inglês: “Uma tubulação de retorno de
vapores, em cada motor, fará voltar ao tanque daquele mesmo lado uma
determinada porcentagem de gasolina. Por isso é necessário que se use, no
mínimo, 30 minutos de combustível desse tanque, antes de se selecionar ‘X-Feed’.
Se o medidor estiver próximo à posição ‘Full’, selecione novamente esse tanque
e utilize-o por 30 minutos para diminuir o seu nível antes de voltar a operar em
‘X-Feed’. Caso contrário, algum combustível será expelido para o exterior
através da tubulação 'VENT'”.
A conclusão foi de que
os fatores que contribuíram para o trágico acidente com o PT-IKT incluíam o ser
humano do ponto de vista biológico como contribuinte e como fatores
operacionais – ações do ser humano no desempenho da atividade aeronáutica – as
condições meteorológicas adversas, a deficiente operação da aeronave, um
deficiente planejamento de voo, além de uma deficiente doutrina de segurança de
voo.
Além das recomendações
para que pilotos tenham disciplina suficiente para seguir todas as normas e
regulamentos pertinentes às operações aéreas, julgando a viabilidade de
execução de um voo e planejando adequadamente a missão, deveriam ter serenidade
psicológica suficiente em caso de emergências, o que requer também pleno
conhecimento dos sistemas da aeronave.
A investigação também
recomendou, na época, que a Embraer, juntamente com o CTA, realizasse estudos para efetuar
modificações no sistema de comando das válvulas seletoras de combustível,
evitando as deficiências observadas nessa aeronave. E, por último, o DAC
deveria rever todo o Manual de Operações de aeronaves daquele modelo para
esclarecer dúvidas em relação ao sistema de “X-Feed” e divulgar amplamente esses
esclarecimentos.
O SENSACIONALISMO E A DESINFORMAÇÃO
(crédito: reprodução da internet)