O JOVEM ENTUSIASTA
APAIXONADO POR JATÕES ANTIGOS
(por Solange Galante)
(Foto: coleção de Calebe Murilo)
Todo mundo sabe que estamos na era
digital. Na aviação, isso implica em facilidades como reservas e check-in pelo
smartphone e telas (e não mais “reloginhos”)
no painel dos aviões de todos os tamanhos, só para citar dois exemplos.
O século XXI, infelizmente, foi inaugurado com pavorosos atentados terroristas utilizando uma
nova “arma” de destruição em massa: o avião comercial. Ou seja, em determinado
momento, “mísseis” passaram a ser aeronaves repletas de passageiros atiradas
contra locais repletos de pessoas, ceifando a vida desses inocentes em nome de
causas políticas e/ou religiosas. E o que tem de mais perigoso nessa
constatação? Que os terroristas supostamente teriam aprendido a voar Boeings a
partir de modernos simuladores de voo, domésticos ou não. É a tecnologia
digital e a insegurança urbana em cheque.
No meio desse caldeirão, muita coisa se perdeu. Em todo o mundo, como também em países como o Brasil, agravou-se o processo de perda do romantismo da aviação comercial. O que isso quer dizer? Os fundadores/presidentes/CEOSs das principais companhias aéreas deixaram de ser aqueles apaixonados aviadores de antigamente, que verdadeiramente amavam o que faziam; bem como praticamente deixaram de existir aqueles homens (antigamente, só homens mesmo) bons de pé e mão que pilotavam aeronaves sem o auxílio de computadores como os que conhecemos hoje, e que hoje seguem rotas definidas por satélites e por tecnologia de ponta; também hoje estão cada vez mais escassos os locais em aeroportos onde pais podem levar filhos para verem aviões “subindo e descendo” para que o amor à aviação brote em seus coraçõezinhos – e não é qualquer criança que tem acesso aos bons e velhos aeroclubes e campos de aviação do interior.
Apresentar a aviação aos jovens não tem o objetivo apenas de evitar que tenham medo de voar ou mesmo de chegar perto de um avião mas, quem sabe, que sigam uma carreira aeronáutica, tenham uma opção a mais para escolher no futuro. A aviação, em geral, é uma das atividades humanas com o menor lucro, pois é necessário muito investimento para que qualquer aeronave decole, e a maior parte desse investimento paga a segurança, seja por meio de muito treinamento a seus funcionários, seja pela tecnologia empregada na infraestrutura ao longo de todo o processo que culminará no voo. A aviação também é daquelas atividades onde o ser humano mais é exigido em matéria de saúde, seja física, mental ou social, pois o corpo sofre, a cabeça pode pirar e o convívio com outras pessoas é mais difícil pela falta de horários. Conheci dezenas de pessoas da aviação que ficaram muito doentes, adquiriram problemas psicológicos ou psiquiátricos, tiveram que se separar de cônjuges que não entenderam sua rotina de trabalho. Junte-se a isso os mais diferentes níveis de pressão profissional, desde o patrão que manda o piloto seguir viagem mesmo em condições desfavoráveis até os colegas que puxam o tapete do colega, pois a aviação envolve sempre muita grana, muito status, muita vaidade e orgulho. Por isso, quem insiste em seguir carreira na aviação de maneira honesta e até sacrificada é um vitorioso, um guerreiro, e teima em voar ou fazer os outros voarem porque realmente gosta do que faz. Ou melhor, não apenas “gosta” mas AMA mesmo, jamais pense que é uma paixãozinha de verão.
Nesse contexto, vim a conhecer o adolescente que destaco neste texto. O capixaba Calebe Murilo cedo conquistou o carinho dos “spotters”, os entusiastas que apreciam ver e/ou fotografar aviões em aeroportos. Ele também direciona sua paixão à página TMA Vitória, que criou em 30 de novembro de 2013 no Facebook e no Instagram: www.facebook.com/tmavitoria e www.instagram.com/tmavix/
No meio desse caldeirão, muita coisa se perdeu. Em todo o mundo, como também em países como o Brasil, agravou-se o processo de perda do romantismo da aviação comercial. O que isso quer dizer? Os fundadores/presidentes/CEOSs das principais companhias aéreas deixaram de ser aqueles apaixonados aviadores de antigamente, que verdadeiramente amavam o que faziam; bem como praticamente deixaram de existir aqueles homens (antigamente, só homens mesmo) bons de pé e mão que pilotavam aeronaves sem o auxílio de computadores como os que conhecemos hoje, e que hoje seguem rotas definidas por satélites e por tecnologia de ponta; também hoje estão cada vez mais escassos os locais em aeroportos onde pais podem levar filhos para verem aviões “subindo e descendo” para que o amor à aviação brote em seus coraçõezinhos – e não é qualquer criança que tem acesso aos bons e velhos aeroclubes e campos de aviação do interior.
Apresentar a aviação aos jovens não tem o objetivo apenas de evitar que tenham medo de voar ou mesmo de chegar perto de um avião mas, quem sabe, que sigam uma carreira aeronáutica, tenham uma opção a mais para escolher no futuro. A aviação, em geral, é uma das atividades humanas com o menor lucro, pois é necessário muito investimento para que qualquer aeronave decole, e a maior parte desse investimento paga a segurança, seja por meio de muito treinamento a seus funcionários, seja pela tecnologia empregada na infraestrutura ao longo de todo o processo que culminará no voo. A aviação também é daquelas atividades onde o ser humano mais é exigido em matéria de saúde, seja física, mental ou social, pois o corpo sofre, a cabeça pode pirar e o convívio com outras pessoas é mais difícil pela falta de horários. Conheci dezenas de pessoas da aviação que ficaram muito doentes, adquiriram problemas psicológicos ou psiquiátricos, tiveram que se separar de cônjuges que não entenderam sua rotina de trabalho. Junte-se a isso os mais diferentes níveis de pressão profissional, desde o patrão que manda o piloto seguir viagem mesmo em condições desfavoráveis até os colegas que puxam o tapete do colega, pois a aviação envolve sempre muita grana, muito status, muita vaidade e orgulho. Por isso, quem insiste em seguir carreira na aviação de maneira honesta e até sacrificada é um vitorioso, um guerreiro, e teima em voar ou fazer os outros voarem porque realmente gosta do que faz. Ou melhor, não apenas “gosta” mas AMA mesmo, jamais pense que é uma paixãozinha de verão.
Eu e Calebe no evento Aeroin na Base Aérea de SP (2016) (Foto: coleção de Calebe Murilo)
Nesse contexto, vim a conhecer o adolescente que destaco neste texto. O capixaba Calebe Murilo cedo conquistou o carinho dos “spotters”, os entusiastas que apreciam ver e/ou fotografar aviões em aeroportos. Ele também direciona sua paixão à página TMA Vitória, que criou em 30 de novembro de 2013 no Facebook e no Instagram: www.facebook.com/tmavitoria e www.instagram.com/tmavix/
Calebe, ainda criança, com o pai. (Foto: coleção de Calebe Murilo)
O pai de Calebe foi aeroviário de
algumas empresas aéreas (Transbrasil, Gol e Azul). Calebe nasceu bem depois do
fim da Transbrasil e bem depois do 11 de setembro de 2001, a trágica data dos
atentados nos Estados Unidos, e já sob a Era Gol, a low costs mais antiga e uma das mais bem sucedidas do Brasil. O
incentivo do pai, apaixonado pelo que fazia, foi inevitável. Em apoio a essa “infecção”
pelo vírus aeronáutico, o pai o levava ao Aeroporto Eurico de Aguiar Salles (também conhecido como Aeroporto de Goiabeiras),
de Vitória, para ver grandes aeronaves bem de perto, e foi aí que Calebe, além
dos aviões da Gol, que foram os
primeiros que conheceu, também podia ver os ATR da extinta companhia
aérea TRIP (fundida com a Azul). E foi justamente no pátio do Aeroporto de
Vitória que Calebe conheceu a Total Linhas Aéreas e seu carro-chefe: o Boeing
727-200F, ou melhor, sua paixão à primeira vista!
Ainda com 3 ou 4 anos de idade, Calebe telefonava
para seu pai no aeroporto, quando ele trabalhava à noite, para saber se o tal “avião
de três turbinas” estava lá – podia ser qualquer um dos Boeing 727-200F da
Total. Aviões fabricados no final da distante década de 1970 e início da de 1980, com painel
analógico (repleto de “reloginhos”), motores muito barulhentos (apesar das
medidas para redução do ruído), sendo três motores, aliás, o que hoje em dia
não se vê mais em grandes aviões de passageiros, além de um terceiro tripulante
na cabine de comando, o engenheiro ou mecânico de voo, que é praticamente o “computador”
do Boeing 727, como o eram também nos Boeing 707, nos DC-10 e versões mais antigas do
Boeing 747.
Por volta de 2008 a Total deixou de voar para Vitória. As empresas que operam para os Correios, como ela, cumprem contratos e, provavelmente, o da Total havia sido encerrado naquela temporada.
Por volta de 2008 a Total deixou de voar para Vitória. As empresas que operam para os Correios, como ela, cumprem contratos e, provavelmente, o da Total havia sido encerrado naquela temporada.
Cabele continuava ouvindo as histórias da
aviação que seu pai lhe contava e, com 8 anos, sentiu que
começava a despertar de vez para a aviação,
que passou a amar. “Esperto para o assunto eu fiquei de 2011 em diante!”, ele
lembra. Logo, o jovem capixaba já se tornava também “spotter”, registrando as imagens dos
aviões lá em Vitória.
A Total
voltaria para a capital do Espírito Santo em 2015. Calebe conta que, nessa
ocasião, o despachante da Total, que era ex-colega de Transbrasil de seu pai,
avisou que o 727 regressaria. Calebe quis ir ver o avião no primeiro dia do voo
e foi lá. Era, então, mais fácil acessar o pátio antes da Infraero mudar o
atendimento para o novo terminal e pátio do aeroporto (era menos restrito). Ele e
um amigo iam visitar constantemente os Boeing 727-200F, e o primeiro foi o PR-TTO. Depois,
visitaram também o PR-TTW e o PR-TTP. Até então, Calebe nunca tinha entrado
numa cabine toda analógica. Antes tinha voado nos aviões Embraer ou ATR da
Azul, ou em Boeing 737-700, 800 e 300 da Gol). Mas quem havia mesmo conquistado
o coração de Calebe em suas visitas foi mesmo o cargueiro com três motores, e o
garoto sempre foi muito bem recebido pelos funcionários da Total.
Essa paixão só crescia, junto com o garoto... (Foto: coleção de Calebe Murilo)
Essa paixão só crescia, junto com o garoto... (Foto: coleção de Calebe Murilo)
O pai de
Calebe trabalhou na Azul Linhas Aéreas até 2012 e, recentemente (de abril de
2017 até agosto de 2018) o filho teve a oportunidade de também trabalhar para a
empresa no programa Jovem Aprendiz. “Eu trabalhava no atendimento (check
in, ajudando no atendimento do totem), e, quando a empresa mudou para o novo
espaço do terminal de passageiros, cuidava dos vouchers de alimentação,
transporte e hospedagem dados aos passageiros em caso de contingência,
cancelamento, atrasos.” Calebe trabalhava durante quatro horas por dia,
remuneradamente, inclusive com tíquete refeição. Para viajar, pagava só
taxa de embarque, então, aproveitou para ir para Manaus, Campinas, Fortaleza, Recife, Bauru, Congonhas, Guarulhos, Confins, Santos Dumont,
Goiânia, etc. Algumas vezes, com pernoites, na maioria, bate e volta. Ficou um
ano e quatro meses como Jovem Aprendiz.
Calebe está sempre pesquisando na
internet sobre assuntos da aviação. “Sempre estou pesquisando história para
saber um pouco mais do que aconteceu no passado da aviação e como ela se tornou
o que ela é hoje.”
Ele pesquisa inclusive a aviação de
décadas antes dele nascer, onde trijatos como os da Total reinavam na aviação
de passageiros também. E foi assim que
o amor de Calebe pelo Boeing 727 despontou de vez e de tal forma que não
bastava mais estar perto do avião, entrar na cabine dele, acompanhar o
carregamento e descarregamento da carga – os produtos de correio aéreo – ,
conversar com os tripulantes, posar para selfies etc. Sabendo que a qualquer
momento aquele modelo de Boeing poderia ser retirado de operação por não ser
mais tão econômico e moderno, Calebe ficou com sua vontade de voar em um deles
cada vez maior, e crescendo cada vez mais.
A REALIZAÇÃO DO SONHO
A REALIZAÇÃO DO SONHO
Como jornalista, eu já realizara duas
viagens completas (ida e volta) em dois dos três 727 disponíveis da Total, e
Calebe sabia disso. Desabafando seu desejo nas redes sociais, chamou a atenção
da atenta diretoria da Total e, com autorização da alta cúpula da empresa aérea
e, é claro, autorização paterna também, chegou a hora de Calebe ver tornar-se
realidade o seu sonho!
Testemunhe o rosto de um adolescente feliz... (Foto: Solange Galante)
Na noite do dia 10 de outubro o
adolescente pode, enfim, voar no PT-TTW para Guarulhos e, depois, regressar a Vitória no PR-TTO. O 727 é um dos
jatos com as asas mais limpas (aerodinamicamente) da aviação comercial, desde seus
tempos áureos até hoje, e esse Boeing desliza feito uma verdadeira flecha pelo
céu. Fui convidada para documentar a emoção do jovem que, ainda assim, não se
descuidou dos estudos: após chegar do voo, foi para casa, tomou um banho e
correu para realizar uma prova de Língua Portuguesa na escola! (disse que foi
bem na prova, e eu acredito nele!).
Calebe, o Cmte. Marcelo Steenhager, a first officer Gisele Leal e o Flight Engineer Patrício em Guarulhos: missão cumprida (mas ainda tinha a volta, é claro) (Foto: Solange Galante)
Dias depois, ele me confessou que já
tinha perdido as esperanças de voar no 727, pois só existe um deles voando comercialmente com
passageiros no mundo, e no Irã! (Até isso ele descobriu
pesquisando!)
Na chegada a Guarulhos, pela primeira vez Calebe viu os três Boeing 727-200F da Total juntos. (Foto: Calebe Murilo)
A Total é, hoje, a companhia aérea regular
mais antiga do país, embora cargueira e contando com apenas alguns voos
fretados para passageiros (utilizando turboélices ATR). Considerando que a
Passaredo, a MAP, a Gol, a Azul e a Avianca são mais jovens que ela, e que a
TAM hoje não é mais TAM, transformou-se em Latam após a fusão com a chilena Lan,
e já são extintas Vasp, Varig e Transbrasil, a Total Linhas Aéreas, fundada em
1988 como Total Aerotáxi, tem, atualmente, sede em Belo Horizonte e pertence,
desde 1994, ao Grupo Sulista, paranaense. No início de 2008, ela passou a deter
parte do capital societário da TRIP Linhas Aéreas, transferindo a esta seu
ativo referente à linha regular de passageiros. Os voos da Rede Postal Noturna
da Total são, hoje nas linhas entre Guarulhos e Porto Alegre, Guarulhos, Curitiba
e Florianópolis, e entre Vitória, Guarulhos e Galeão
Na chegada a Vitória, a despedida do PR-TTO que o levou para casa.
(Foto: Calebe Murilo)
Horas antes do voo
entre Vitória e Guarulhos, de onde retornaria para casa, Calebe me apresentou o
Sr. Alfredo que, a partir de uma troca de e-mails comigo, havia decidido
presentear o jovem com um livro contando a história do Aeroclube do Espírito
Santo, onde foi instrutor durante muitas décadas e hoje preside o Conselho. Também ofereceu a Calebe o curso
teórico de piloto na mesma instituição, basta Calebe completar 17 anos (falta
pouco) para poder assistir às aulas. “Vamos também ajudá-lo no que for
possível, considerando se tratar de pessoa humilde, mas com muita vontade de
prosseguir na aviação; digo isso porque eles – Calebe e seu amigo João Victor –
já estão dentro dela: descobri que são dois ‘ratos de hangar’, já muito
conhecidos do nosso pessoal de voo, aliás, o pai do Calebe foi aluno da nossa primeira
turma de comissários de voo, lá pelo final da década de 90. Assim sendo, acho
que não falta mais nada para os dois concretizarem o sonho de voar.” O sr. Alfredo nos convidou para um voo panorâmico em um dos Cessna Skyhawk do Aeroclube do Espírito Santo.
Após o voo no Cessna: Calebe cada vez mais próximo da aviação.
(Foto: coleção de Solange Galante)
Portanto... Mais emoções aguardam
Calebe em sua inevitável trajetória na aviação, com todo esse amor que ele
nutre especialmente pelos aviões clássicos com os quais ele pouco convive mas se
dedica bastante. Cumpro minha parte de ajudar a direcioná-lo, aconselhando-o a
não ficar só no infeliz imediatismo dos Instagram e Facebook, onde muitos “spotters”,
especialmente os mais jovens, contentam-se apenas em ter suas fotos curtidas ao
máximo... e só! Pois a aviação do futuro não se faz assim! Faz-se cultivando
sua história, aprendendo a todo momento cada vez mais sobre a arte e a técnica
do voo, compartilhando não apenas imagens mas experiências e preservando-a por
meio de coleções diversas, para a troca de conhecimento não deixar o passado e
o presente se perderem, e construírem o futuro, para que novas gerações
continuem amando o voo.
Durante nossa entrevista, João Victor,
grande amigo de Calebe, contribuiu fazendo a seguinte pergunta ao nosso
personagem: “Onde você se vê na aviação daqui a cinco anos?” Calebe respondeu “Eu
me vejo um agente de aeroporto.” Assim, ele demonstrou estar com os pés bem no chão
e sabendo que poderá ser feliz mesmo se puder ser aeroviário e não seguir
carreira como piloto, o que ele decidirá no futuro.
Espero que o jovem Calebe, que sabe
olhar a essência da aviação, jamais perca essa característica e ajude a
construir os alicerces da futura grande aviação brasileira. Pois os
alicerces também vêm do passado e são cimentados no presente.
Final feliz? Nada... está apenas começando essa história!!! (Foto: Calebe Murilo)