(Foto: Rosvalmir Afonso Delagassa)
CUIDADO COM O BURACO NEGRO:
DESORIENTAÇÃO ESPACIAL
***(Matéria publicada originalmente em 2003 na revista Aero Magazine)***
(Solange Galante)
A queda do King Air em Paraty na semana passada, transportando o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, tem forte chance de ter sido causada por desorientação espacial, uma armadilha que pega, como vemos, inclusive pilotos com grande experiência. Lembrei deste texto que redigi há mais de 13 anos. Serve como mais uma preciosa lição a todos nossos aviadores e aviadoras.
Na noite de 26 de janeiro de 2003, o voo RG 2240, da Varig, iniciado em
Guarulhos, aproximou-se de seu destino, Aeroporto Presidente Médici, em Rio
Branco (Acre) com previsão de pouso à meia-noite e meia (horário local). Nessa
etapa final, a pilotagem estava aos cuidados do copiloto Dario (PF - pilot
flying). Ao seu lado, o Cmte. Carlos Camacho, como PNF (pilot not flying)
monitorava-o.
O Boeing 737-300 iniciou sua descida para atingir a MDA (Minimum
Descent Altitude, a altitude mínima prevista nas cartas de descidas
por instrumentos. Se a pista não for avistada na MDA, o piloto deverá iniciar o procedimento de aproximação perdida. Neste caso, a MDA prevista para o procedimento Delta quatro
(VOR/DME) para a pista 06 do Aeroporto de Rio Branco era de 1.150 pés (517 pés
acima da elevação do aeroporto). Sobrevoavam a escuridão da densa floresta
amazônica.
De repente, o Cmte. Camacho teve a estranha sensação de que estivessem
muito baixo e ordenou que o copiloto parasse a descida. Dario agiu imediatamente
e nivelou o avião. Os instrumentos do painel, porém, indicavam que a aeronave
encontrava-se ainda entre 200 e 300 pés acima da MDA, ou seja, aquela sensação
havia sido indevida. Camacho então percebeu – e entendeu – seu equívoco. A
bordo da cabine de comando estava também o Major Fabrício, do SRPV (Serviço
Regional de Proteção ao Voo) de Manaus, que estava indo a Rio Branco para fazer
a investigação inicial de um incidente com um Cessna Grand Caravan, ocorrido na
véspera. O Cmte. Camacho voltou-se para ele e comentou: “Viu só? Foi o efeito black
hole.” O major concordou.
A aeronave prosseguiu naquela altitude até atingir o perfil para descer
balizado pelo PAPI (Precision Approach Path Indicator) Camacho ainda
reportou à torre local a possibilidade de formação de nevoeiro, pois a
visibilidade já estava “embaçada”, como ele definiu.
Cerca de apenas duas horas e meia depois, quando estava no hotel da
cidade, o comandante da Varig soube que acabara de ocorrer um acidente com um
Boeing da Vasp na mesma pista onde havia pousado há pouco. Como integrante do
Grupo de Trabalho da Secretaria de Segurança de Voo do Sindicato Nacional dos
Aeronautas, Camacho seguiu para o aeroporto, onde já encontrou o Major
Fabrício. Havia mais um acidente a ser investigado.
BURACO NEGRO
Aproximadamente às 02:15 h (horário local) o Boeing 737-200 PP-SPJ da
VASP, voo VP 4375, vindo de Manaus, colidiu com algumas árvores durante a
aproximação final. Em seguida seus motores apagaram e a aeronave tocou forte na
pista a 100 metros da cabeceira 06, perdendo parte do trem de pouso. Foi um
típico acidente CFIT (Controlled Flight Into Terrain – colisão com o solo em voo
controlado). Não houve feridos mas a aeronave teve perda total.
O Cmte. Camacho conversou com todos os tripulantes desse avião e contou
que, segundo os pilotos, apesar da visibilidade estar reduzida devido ao
nevoeiro, eles conseguiam avistar a pista. O PF (pilot flying, no caso,
o copiloto) avistou a pista 06, prosseguiu descendo até a MDA e, de repente,
bateram em árvores. Pelo depoimento, o Cmte. Camacho acredita que o PF teve
desorientação espacial, por efeito do black hole (buraco
negro) e desceu demais (ao contrário do que aconteceu com o comandante da
Varig), o que teria contribuído, juntamente com outros fatores, para o acidente
– segundo o Departamento de Aviação Civil, esse acidente ainda se encontra sob
investigação por parte do DIPAA (Divisão de Investigação e Prevenção de
Acidentes e Incidentes Aeronáuticos).
Muitos acidentes aeronáuticos são causados por alguma ilusão que os
pilotos experimentam durante o voo, sem reconhecê-la como tal. Em voo,
orientar-se é um problema muito maior do que no chão porque o corpo é
influenciado por várias impressões ilusórias causadas por acelerações impostas
sobre ele pelo movimento da aeronave. E, por mais que a tecnologia aeronáutica
tenha criado instrumentos precisos para auxílio da pilotagem, como o horizonte
artificial e outros, todos hoje muito confiáveis, os pilotos ainda correm o
risco de se concentrarem mais nas sensações de seu próprio corpo do que nos
instrumentos à sua frente, gerando um perigoso conflito. Essas sensações são
inadequadas à manutenção do equilíbrio em voo quando há ausência de apoio
visual. Essa desorientação prejudica enormemente o voo sem visibilidade
externa ou em condições de baixa visibilidade.
O ser humano tem três fontes principais de informação que o auxiliam a
manter sua orientação em relação à superfície da Terra: o sistema visual, o
aparelho vestibular (ouvido interno) e o sistema proprioceptível Este último
inclui muitas estruturas corporais, inclusive a pele e as articulações. São as
sensações de pressão experimentadas nas nádegas ao sentar-se, nos pés ao estar
de pé ou nas espáduas ao deitar-se. Desde cedo nos habituamos a perceber o
mundo com nossos olhos e quando não temos auxílio da visão, toda nossa atenção,
que comumente direcionamos para fora de nós, passa a ser em função da percepção
que temos de nós mesmos.
Assim, daqueles três recursos, somente o sistema visual é confiável para
fornecer uma imagem verdadeira da atitude do corpo no espaço, isto é, sem
contato com o solo, e desde que receba informações adequadas do mundo externo
ou de instrumentos precisos. O aparelho vestibular e o sistema proprioceptível
(com o popular “voar com os fundilhos das calças”), por outro lado, são não só
falíveis como também capazes de passar para o cérebro informações que,
freqüentemente, geram desorientação espacial. Quando o piloto visualiza seu
painel de instrumentos, pode ter uma apresentação que é diferente da imagem que
ele tem formada em sua mente. Neste momento ocorre um estado de conflito. Por
isso, o voo por instrumentos, em especial o noturno, devido à visibilidade
externa limitada, requer que o piloto tome muito cuidado e confie apenas nos
seus instrumentos.
Várias pesquisas indicam que as desorientações espaciais são
responsáveis por aproximadamente 15% dos acidentes aéreos, a maioria desses,
fatais. Podem ser causadas por problemas no ouvido interno, ilusões visuais e
dificuldades de origem psicológica. Mesmo a falta de treinamento adequado induz
os pilotos a não confiarem nos instrumentos. Sem referências visuais por
redução na visibilidade e aproximação noturna sem a referência de luzes (o
cérebro não recebe estímulos o suficiente), o piloto poderá superestimar
distâncias ou o ângulo de inclinação de planeio.
O efeito chamado “buraco negro” (black hole effect) faz parte
dessas desorientações e é bem típico da aproximação noturna, sobre floresta ou
mar, ou seja, onde não há outras luzes que não as do aeroporto adiante. A
ausência de iluminação na zona de aproximação aumenta sobremaneira os riscos
associados às ilusões de ótica, especialmente se for uma aproximação prolongada
– no caso da aproximação para a pista 06 de Rio Branco, segundo o Cmte.
Camacho, ela dura mais de um minuto. O “buraco negro” cria uma ilusão de
altura, pois sombras são um dos fatores básicos na percepção de profundidade e
a ausência de sombras, devido restrições de visibilidade – inclusive névoa e
fumaça – prejudica a interpretação da altura correta. O efeito varia de pessoa
para pessoa – nos exemplos acima, Camacho teve a sensação de estar mais baixo e
o copiloto da Vasp desceu demais, certamente se sentindo bem acima da MDA. O
efeito é influenciado também pela intensidade da iluminação visível no
exterior. Luzes brilhantes podem aparecer mais próximas e luzes menos claras,
mais distantes.
As ilusões de ótica e seus efeitos poderão ser minimizados pelo piloto
consciente dos fatores que os produzem e máxima concentração nos instrumentos disponíveis.
Se necessário, as luzes da cabine devem ser acesas para melhor iluminá-los.
Treinamento direcionado ao reconhecimento de seus próprios limites é
fundamental para se evitar o CFIT. Sensações confusas de orientação são normais
e o perigo do conflito de informações sensitivas reside em colocar seus limites
acima dos limites da aeronave. Então, se aquilo que você vê difere daquilo que
você sente, mantenha a calma e acredite nos instrumentos.
(Foto: Rosvalmir Afonso Delagassa)
Interessante a história desse acidente.. Eu e minha mãe estávamos no aeroporto de Rio Branco na noite de 25 de janeiro de 2003 e viajaríamos nesse avião para GYN. No checkin nos avisaram que a aeronave está bem atrasada (cerca de 2 ou 3 horas). Ocorreu o pouso e decolagem do 737 da Varig e de um 732 cargueiro da Vasp sem problemas. Houve normalmente o aviso de chegada do voo da Vasp(aviso sonoro comum àquela época). No saguão ouviu-se o barulho característico dos pousos e de repente começou uma gritaria e correria de pessoas que estavam no mirante e perceberam o que acontecia. Lembro de passageiros saindo da sala de desembarque chorando, passando mal e dizendo "nascemos de novo"; "ele errou a pista"... Não houve feridos graves. Táxis e outros veículos trouxeram os passageiros até o terminal. Lembro também do piloto falando para os passageiros "não tive culpa"... Viajamos na tarde do dia seguinte em uma outra aeronave, um 737 que veio para buscar os passageiros e continuar o voo. Já li que os 2 últimos boeings que a Vasp perdeu foi em acidentes no Acre. Nos anos 90, um cargueiro explodiu ao colidir contra o solo na aproximação em CZS, e nos anos 2000 ocorreu esse acidente em RBR.
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